Não bastasse a Covid-19, as sucessivas crises geradas pelo governo brasileiro confiscaram o nosso tempo (presente e futuro) de modo implacável. Não ritualizamos mais o cotidiano, tudo ocorre sem bossa, sem leveza, não há mais “carpe diem, quam minimum credula póstero”. A frase é um conselho do poeta romano Horácio a sua amiga Leucone, no Livro I de “Odes” e é traduzida como: “colha o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã”.

Convenhamos. Duas tarefas impossíveis de serem realizadas num contexto em que, de um lado, passamos o dia tentando escapar do vírus e, de outro, procuramos não sucumbir à barbárie que grassa em quase todas as latitudes da vida social. Os dias vividos deixam de ser concebidos e não resta a mínima confiança no amanhã, já que o futuro foi sequestrado e, quando ousa mostrar o esboço de sua face, o que se delineia no horizonte não augura coisas boas.

A crise militar gerada pelo próprio presidente foi mais um acontecimento que embaralhou e suspendeu as temporalidades. Ocorrida nas cercanias do 31 de março/1 de abril, aspirou comemorar, em tom ufanista, o golpe de 64 na pior versão do revisionismo, lançou ainda mais incógnitas no presente que se ampliam no futuro. Assim, passado revisado, presente enigmático e futuro suspenso compõem a tríade de um tempo que vem expelindo
a esperança em dias melhores. Provavelmente, uma das principais trincheiras de reação a esse estado de coisas é o resgate da temporalidade como vetor fundamental para a concepção da nossa existência.

As sucessivas crises geradas pelo governo Bolsonaro confiscaram, de modo implacável, a nossa alegria e leveza

Pôr em perspectiva o tempo como categoria política recobre um leque abrangente de desafios. Desse leque destaco:

1) a luta pela sobrevivência, uma vez que a morosidade na aplicação das vacinas provoca a morte de milhares de pessoas, deixa tantas outras sem o mínimo para sua subsistir, cria obstáculos intransponíveis para a economia do país.

2) a volta da civilização, já que este governo trucida o presente e adia o futuro, ficamos reféns de experiências de um passado que não passa. E o passado da institucionalidade brasileira não recua à casa de 1964, mas àquela em que os embriões do autoritarismo de hoje nasceram e floresceram, cultivando a escravidão como um modo de vida que se queria perene para muitos.

É preciso, dessa maneira, que rompamos com tempos pretéritos (anticiência, negacionismo climático, teorias da conspiração, discursos de ódio) e enunciemos um bem-vindo ao século XXI. Enquanto isso não acontece, o futuro de todos continua bloqueado!