O plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou nesta quarta-feira, 30, as contas do governo Jair Bolsonaro em 2020, mas impôs ressalva à falta de transparência e de critérios no repasse das verbas do orçamento secreto. Por unanimidade, a Corte recomendou dar “ampla publicidade” aos documentos das emendas de relator-geral, conhecidas pela sigla RP 9, mecanismo utilizado pelo esquema de compra de apoio político revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Essa é a primeira análise do tribunal sobre o chamado “tratoraço”. Outros seis processos sobre suspeitas de irregularidades na distribuição das emendas de relator ainda serão julgados.

A recomendação representa uma derrota política para o Palácio do Planalto, que mobilizou os ministros Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Paulo Guedes (Economia), Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e André Mendonça (Advocacia-Geral da União) para acompanharem presencialmente o julgamento.

Nos últimos dias, o Planalto enviou emissários para pressionarem os ministros do TCU a não incluir ressalvas quanto a emendas de relator na decisão sobre as contas da Presidência.

O ministro Ramos, que participou da criação do RP 9 enquanto era titular da Secretaria de Governo, é um dos que lideram a estratégia para negar a existência do orçamento secreto, narrativa derrubada nesta quarta-feira pelo plenário do tribunal.

A ressalva nas contas foi recomendada pelos técnicos da Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do TCU e aprovada de acordo com o voto do ministro relator, Walton Alencar. “A inovação legislativa trouxe perplexidades e dificuldades em sua operação”, disse o relator, em seu voto. “Diferentemente do que ocorre com as emendas individuais, que dispõem sobre procedimentos padronizados e centralizados, com ampla transparência de todas as fases da alocação dos recursos, verificou-se não haver uniformização de procedimentos para a distribuição ou alocação de despesas suportadas com recursos advindos de emendas RP-9.”

De concreto, o TCU orientou o governo a disponibilizar, em plataforma centralizada de acesso público, os documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que embasaram as demandas de parlamentares para distribuição das emendas do ano de 2020. Para o exercício de 2021, foi recomendada a adoção de medidas para que os pedidos também sejam registrados em plataforma eletrônica centralizada, mantida pelo órgão central do Sistema de Planejamento e Orçamento Federal do Ministério da Economia. “A ausência de procedimentos sistematizados (para distribuição de emendas RP9) dificulta o monitoramento e a avaliação dos critérios”, afirmou Walton Alencar Rodrigues.

Como mostrou o jornal O Estado de S. Paulo esta semana, além do Desenvolvimento Regional, a prática do orçamento secreto foi utilizada em ao menos outros três ministérios (Defesa, Agricultura e Justiça). Planilhas, ofícios e até mensagens por WhatsApp revelam os acertos para o repasse de R$ 261 milhões de emendas do relator-geral.

Urgência

O ministro Benjamin Zymler, em seu voto, reforçou a gravidade do uso dado pelo governo às verbas do orçamento secreto. “Isso é absolutamente urgente. Claramente essas emendas se contrapõem aos princípios orçamentários de transparência e universalidade”, afirmou Zymler. “É preciso sem dúvida afastar as falhas no processamento dessas emendas.”

Dos R$ 21,9 bilhões empenhados para emendas de relator-geral em 2020, R$ 11,6 bilhões foram destinados a municípios e Estados. Em uma análise sobre esses números, o tribunal observou que a média per capita nacional das emendas RP 9 foi de R$ 54,77, mas que algumas prefeituras e governos estaduais receberam valores muitas vezes superiores.

Na síntese do relatório sobre a análise das contas, o tribunal apontou que não foram identificados os critérios objetivos e os referenciais de equidade que nortearam a distribuição das emendas de relator-geral, por exemplo, entre as capitais que receberam valores mais significativos. “Entre as cidades, sobressaem os valores per capita entregues aos municípios de Tauá (CE), Carneiro (AM), Parintins (AM) e Santana (AP), cuja distribuição variou entre R$ 2.476 a R$ 969 per capita”, disse a nota. Roraima, pelo qual foi eleito o então presidente do Senado no ano de 2020, senador Davi Alcolumbre, recebeu em média R$ 531 per capita. O esquema ficou conhecido nas redes sociais como “tratoraço”, pois parte dos recursos foi usado para comprar tratores em redutos eleitorais de parlamentares.

Depois de examinar as explicações do governo sobre o chamado orçamento secreto, a área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o mecanismo usado para distribuir as emendas de relator-geral do Orçamento é incompatível com a Constituição. O relatório dos auditores apontou falta de transparência e critérios na lógica de atender ofícios de deputados e senadores no repasse dos recursos. “A realidade identificada não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability”, destacou o documento preparado pela equipe do tribunal.

Metas

Um outro problema grave apontado pelo tribunal na análise das contas foi a verificação de falta de qualidade e confiabilidade no cumprimento das metas do Plano Plurianual da União (2020-2023). Das 74 metas analisadas neste ano, foram rejeitadas 35 metas (47%) quanto à qualidade, e 13 metas (17%) com relação à confiabilidade dos dados apresentados. Segundo o ministro Augusto Nardes, essa foi “a pior análise realizada pelo tribunal nos últimos anos”.

No caso do programa Prevenção e Controle do Desmatamento e dos Incêndios nos Biomas, a meta relativa à redução do desmatamento e dos incêndios ilegais nos biomas brasileiros não pôde ser apurada para o ano-base 2020 pela inexistência de um indicador. “Desse modo, verifica-se que, neste momento, não existe indicador que possa retratar e permitir o monitoramento da meta do objetivo do programa”, destaca o relatório do TCU.

A análise das contas da presidência também “apontou grave deterioração das já fragilizadas condições fiscais do País, o que exigirá esforços para correção de rumos e implementação das receitas públicas”, segundo o ministro Walton Alencar Rodrigues. Neste ano, foi dispensado o atendimento das metas previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei de Responsabilidade Fiscal, em razão do estado de calamidade pública decretado em 2020, que permitiu uma espécie de “licença” para ampliar os gastos no combate aos efeitos da pandemia.

Também houve apontamentos de falta de transparência nos dados do Ministério da Economia. A auditoria financeira feita pelo tribunal indicou a necessidade de abstenção de opinião sobre a confiabilidade e a transparência das demonstrações financeiras do regime de Previdência dos servidores públicos. Essa indicação decorreu de limitações encontradas na auditoria financeira realizada sobre as informações referentes à Administração Tributária (Receita Federal e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional).