Pessoalmente não me afeta a tatuagem que a cantora Anitta fez no “totoró” – a escolha da palavra é dela. Em 2019, a funkeira fez uma tatuagem íntima. O motivo e a escolha anatômica para o desenho na
própria pele não são da minha conta; decidir sobre o próprio corpo cabe somente à cantora. Como deveria acontecer em relação a qualquer pessoa, Anitta está condenada a ser livre, e exercita isso sem
amarras.

A tal tatuagem foi alçada à condição de tema de “interesse público” em comentários do cantor sertanejo Zé Neto num show com sua dupla, Cristiano, no interior do Mato Grosso. Ele aproveitou o evento,
custeado pela Prefeitura de Sorriso, para se jactar de não depender da Lei Rouanet e, numa clara referência à diva pop, de não precisar “fazer tatuagem no ‘toba’”. “Nosso cachê quem paga é o povo”, disse.

Por meio de contratação, realizada sem licitação e muito menos suscetível a controle e fiscalização do que se esses artistas tivessem se submetido à burocracia da Lei Rouanet, Zé Neto & Cristiano
receberam um cachê de R$ 400 mil.

Os fãs da cantora reagiram trazendo para o centro do debate outro tipo de moralidade, a administrativa. Como resultado, sertanejos como Gusttavo Lima e outros tantos, beneficiados com contratos similares, tiveram shows cancelados por prefeituras país afora.

Mas aqui o assunto é outro. É sobre como uma mulher como Anitta consegue mexer tão profundamente com a cabeça e o fígado de uma gente que se orgulha da própria ignorância e do próprio atraso e que, nestes tempos estranhos, se sente legitimada e autorizada a fazer proselitismo político num show pago com dinheiro público pela imagem de um igual na Presidência da República.

A visão de mundo de Zé Neto coincide com a de um governo que nega às mulheres qualquer protagonismo que não seja o da “primeira-dama ligada a causas assistencialistas” ou o da “ministra de Direitos Humanos defensora da família tradicional brasileira”. E que silencia as mulheres – por meio de processos dos quais muitas vezes nem nos damos conta. É o caso, por exemplo, do veto de Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes femininos para estudantes de baixa renda. O Brasil é o país em que
grande parte das crianças e adolescentes frequenta a escola para garantir pelo menos uma refeição por dia; também é o país em que adolescentes e jovens mulheres deixam de ir à escola porque lhes é
negada a dignidade menstrual.

Negamos a nossas meninas, portanto, o direito de participar de forma efetiva e digna de um processo educacional que já é tão marcado por inúmeras deficiências e contribuímos para perpetuar o fosso que separa homens e mulheres – no Brasil, elas ganham cerca de 20% menos do que eles na mesma categoria de ocupação. As mulheres também ocupam bem menos espaços do que os homens na vida política do país. O próprio governo serve de amostra: apenas um dos 23 ministérios é comandado por
uma mulher. E foi exatamente o Ministério da Mulher que achou legítimo utilizar o aparato estatal para constranger e tentar impedir o aborto autorizado pela Justiça para uma menina de dez anos estuprada pelo próprio tio. É, portanto, um governo que acha que tem domínio sobre os corpos femininos – inclusive sobre o corpo miúdo e franzino de uma criança de dez anos.

É por isso que Anitta incomoda tanto. Porque é a antítese desse estado de coisas. Jovem, bonita e talentosa, é dona do próprio corpo e dos próprios desejos. Não permite que o Estado defina como deve se comportar. É livre, enfim. “E eu pensando que estava só fazendo uma tatuagem no tororó”, disse a funkeira. Não, Anitta. Sua tatuagem é um posicionamento político.