Está marcada para a próxima terça-feira a votação no Senado do PL 2630/20, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Trocando em miúdos, trata-se de uma lei para lidar com a propagação de fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem.
O momento para lidar com o assunto não poderia ser mais quente. Além da ação do STF contra empresários e influenciadores digitais bolsonaristas, o presidente americano Donald Trump entrou em guerra com o Twitter, depois que a plataforma sinalizou dois de seus posts como tendo informações falsas sobre a votação pelo correio, uma prática adotada nos Estados Unidos.
Já escrevi neste espaço que as fake news representam um problema “diabolicamente difícil” para as democracias. O objetivo legítimo de coibir a propagação de mentiras, calúnias e discursos de ódio tem de ser equacionado com o princípio da liberdade de expressão, sem o qual uma sociedade aberta não funciona.
Não há dúvida que informações falsas que prejudicam indivíduos (“Fulano é pedófilo”) ou coletividades (“É bom tomar cloroquina contra o coronavírus”) podem e devem ser punidos. Mas isso deve ser resultado de processos legais cuidadosos, que asseguram que a má fé está sendo castigada, e não a liberdade de expressão.
Acredito que o PL brasileiro vai na direção correta. Ele orienta as redes sociais a adotar mecanismos de checagem de informações e alertar sobre mensagens que considerem “fake”, sem no entanto derrubá-las.
As medidas mais robustas, porém, vão no sentido de combater as contas inautênticas, os robôs e as redes de difusão clandestinos, e os conteúdos patrocinados que não são identificados como tal. Em outras palavras, o propósito é ampliar a transparência e impedir pessoas ou grupos de manipular e falsificar informações a partir das sombras.
Como diz o bordão, a luz do sol é o melhor desinfetante. Saber quem está por trás de uma mensagem ajuda a interpretar o conteúdo. Está de acordo com o princípio constitucional que proíbe o anonimato no Brasil. E não transforma empresas, comitês gestores ou algum outro tipo de órgão em tribunal sumário daquilo que as pessoas devem ou não devem ver nas redes sociais.
Algumas leis sobre fake news já foram aprovadas no mundo, e nenhuma passou pelo crivo defensoras da liberdade de expressão. Leis de países com governos linha dura, como Rússia, Singapura e Venezuela são vistas como tentativas mal disfarçadas de calar opositores. Mas a precursora de todas as iniciativas para restringir a circulação de fake news, a lei alemã que entrou em vigor no início de 2018, também é vista como falha, apesar de ter sido aprovada em um país democrático.
A lei alemã obriga plataformas como Facebook e Twitter a eliminar postagens que se encaixem numa lista com 22 tipos conteúdo ilegal, sob pena de multa de até 50 milhões de euros. A lista cobre desde ameaças concretas de violência até insultos dirigidos contra ocupantes de cargos públicos.
O estatuto é criticado por transformar as empresas de tecnologia em árbitros do que seria conteúdo adequado, muito embora a fronteira entre o legal e o ilegal nem sempre seja fácil de estabelecer. Além disso, ele não oferecer um mecanismo rápido de contestação para quem achar que seu direito de livre expressão foi atingido.
O papel das plataformas sociais também está no centro da disputa entre Trump e Twitter. Ofendido com o carimbo de “falso” aplicado pelos Twitter a seus posts, o presidente americano passou a dizer que empresas de tecnologia estão querendo censurar o discurso dos usuários. Em retaliação, derrubou uma norma existente desde os anos 1990, que diz que as plataformas não podem ser responsabilizadas pelo conteúdo publicado nelas.
Até agora, se um sujeito caluniasse outro em um tuíte, o serviço de mensagens não pode ser considerado cúmplice nos Estados Unidos. Com a revogação da regra por Trump, as gigantes de tecnologia podem acabar arrastadas para um sem número de batalhas judiciais custosas. Na contramão do que deseja Trump, podem também baixar regras de uso draconianas, justamente para se eximir de co-responsabilidade por mensagens que venham a ser tidas como criminosas. Haveria uma transformação profunda no sistema das redes sociais como é conhecido hoje.
Alguns legisladores brasileiros também acham que as redes sociais devem ser responsabilizadas pela disseminação de fake news. Empresas de TI e entidades como a Coalizão Direitos na Rede, que reúne 38 organizações da sociedade civil, acreditam que essa responsabilização já está embutida no projeto de lei do Senado, e vão tentar alterá-lo. É um debate acirrado e por causa dele é bem provável que a votação acabe sendo adiada.
Mas a proposta brasileira é boa. Bem melhor que a alemã. Mantido o seu espírito, deve ser aprovada o quanto antes, pois vai dificultar a existência presente ou futura de gabinetes do ódio.