Com o avanço da ciência, que ajuda a estender a expectativa de vida, listas de espera por transplantes se avolumam em todo o planeta. Não há número de doadores que acompanhe essa demanda e equipes de vários países se empenham atrás de soluções para obter mais órgãos.

Um dos métodos, que vem apresentando resultados cada vez melhores, é o xenotransplante, com a produção de embriões geneticamente modificados de suínos, para que na idade adulta se tornem “doadores” de órgãos para humanos.

No Brasil, o nascimento dos primeiros filhotes criados a partir desses estudos é esperado para abril, coincidindo com a inauguração do biotério suíno NB2 (Nível de Biossegurança 2, de esterilização absoluta), que é parte do Genoma — um projeto do Instituto de Genética da USP.

A informação é de Silvano Raia, o primeiro cirurgião no mundo a realizar transplante de fígado intervivos, ainda em 1988. E que agora coordena esse grupo de trabalho ao lado da geneticista Mayana Zatz, “pelo desenvolvimento científico do nosso País”, nas palavras do próprio médico que, aos 93 anos, afirma: “A busca por novas tecnologias é o que caracteriza a minha vida”.

“A busca por novas tecnologias é o que caracteriza a minha vida.”
Silvano Raia, cirurgião à frente de pesquisas sobre xenotransplantes no projeto Genoma USP

Ainda há muitas mortes de pessoas que aguardam doadores de órgãos — no Brasil, são sete por dia. Daí o esforço em todo o mundo para obter órgãos adicionais, de animais geneticamente modificados, para serem transplantados em humanos.

Os japoneses da PorMedTec, que anunciaram o nascimento de três porquinhos geneticamente modificados em 11 de fevereiro para se tornarem doadores de rins já em 2025, compraram as células de laboratórios dos EUA. “Pagaram uma fortuna e, na verdade, os filhotes são americanos nascidos no Japão. Para nós não seria interessante. Nossos doentes são do SUS”, destaca Silvano Raia, citando que o grupo brasileiro decidiu pela produção dos embriões aqui.

Em 11 de fevereiro, uma empresa japonesa anunciou o nascimento de seus primeiros filhotes geneticamente modificados (Crédito:Divulgação )

“Procurei a professora Mayana Zatz há oito anos, para começarmos a pesquisar essa transformação genética utilizada no xenotransplante”, conta o médico. “Conseguimos sistematizar esses embriões clonados implantados em fêmeas como ‘barriga de aluguel’ [e que têm gestação média de três meses, três semanas e três dias]. Agora, aguardamos o nascimento dos filhotes .”

Com um biotério maior — que deve ficar pronto no IPT da USP em um ano —, também será possível criar um laboratório embrionário para, no futuro, até exportar as células suínas modificadas.

Em paralelo ao trabalho dos pesquisadores no Genoma, experiências pré-clínicas para os potenciais receptores de órgãos de animais prosseguem no Incor, também em São Paulo, a cargo de equipes com especialistas em rins, coração, fígado, pele, córneas e imunologia, porque o suíno modificado geneticamente se torna doador universal (de todos esses órgãos).

Rins são prioritários, porque em caso de rejeição o paciente pode voltar para a hemodiálise, o que é impossível com o coração, por exemplo.

O cirurgião plástico Vitor Pagotto participa do grupo e lembra que tentativas de transplantes diretos de animais para humanos vêm de 100 anos, o que se mostrou impossível principalmente pela incompatibilidade do sistema imunológico.

“Foi pela década de 1990 que se iniciaram as alterações em embriões. É um processo complexo e sempre acompanhado de medicamentos imunossupressores”, diz o médico.

Esses órgãos formados a partir de suínos — mais próximos dos humanos em tamanho e peso — são transplantados em pacientes que já não teriam mais condições de sobreviver.

E as alterações genéticas sempre são realizadas em ambiente estéril, livre de bactérias e vírus próprios da espécie — há o caso de um americano que sobreviveu a um transplante de coração, mas teria morrido por um citomegalovírus suíno que estava no órgão.

Nascimento de filhotes geneticamente modificados deve coincidir com inauguração do biotério suíno na USP

O advogado Henderson Fürst, especialista em Direito Médico, lembra que a falta de doadores de órgãos é um problema global — tanto que hoje já é aceito o “bebê-medicamento” — com a manipulação de células-tronco para a mãe engravidar de um filho que seja compatível para doação a um irmão mais velho.

Mas no caso do xenotransplante — ainda na esfera de experimentos científicos — a questão é mais complexa, porque não existem protocolos de segurança e eficácia de tratamento. Por isso, formatar um termo de conhecimento para o paciente, que receberia esse órgão, esbarra em situações de risco justamente ainda desconhecidas.