No vasto e fumegante braseiro a céu aberto, de labaredas inclementes, mato seco esturricado e fogaréu até onde a vista alcança, irrompendo às alturas, sem controle, respirar é quase insuportável. Ardem os pulmões. O cheiro das cinzas de animais fritados vivos, que invade as narinas, misturado ao pó da terra barrenta e aos ventos quentes de gás e fuligem putrefata com toda aquela queima incessante, transforma o ambiente em cenário cruelmente real de uma sucursal do inferno. Sítio das trevas. Desolador. Nunca foi tão devastador. Um bioma inteiro, dentre os mais ricos e diversificados do mundo, ardendo em chamas incontroláveis. Implacáveis. Quase 30% desse paraíso na Terra tomados pelas queimadas, consumidos pela destruição que não encontra paralelo na história da região. Sem resistência, sem fiscalização, sem qualquer esforço das autoridades competentes para evitar ou barrar o processo.

Alguns, como o próprio presidente Bolsonaro, diante das cobranças, foram capazes de gargalhadas indolentes, em recente e bizarra reunião no Palácio do Planalto. Quando ali questionados por uma criança de 10 anos a respeito do fogo no Pantanal, os presentes fizeram pouco caso da pergunta e, em tom de galhofa, tripudiaram da garotinha.

“Mandamos dez aviões para jogar água lá”, respondeu um deles aos risos, como se fosse a iniciativa suficiente. Ao menos para calar a curiosidade infantil, deve ter pensado. Sabe não ser. Descaso. Descrença. Abandono. Combinados à temporada de intempéries climáticas arrasadoras que castigam a vegetação, e aos abates criminosos, compõem a receita explosiva do caos ambiental. Fauna e flora sofrem de maneira lancinante e somem da paisagem. Restam carcaças de bichos e árvores carbonizados. A vazante da natureza que ali fazia seu belo espetáculo da multiplicação de espécies cedeu lugar ao extermínio. É triste de ver. Difícil de aceitar. A algaravia de pássaros misturada ao serpentear de animais silvestres que habitavam a planície pantaneira, e dominavam o local, hoje é substituída pelo quadro dantesco e tenebroso de corpos fétidos das milhares de vítimas largadas à própria sorte. Jacarés, capivaras, cobras, onças, ariranhas, infindável diversidade de aves dizimadas pela ação do homem em sociedade com a escaldante secura da temporada. O Pantanal, maior planície alagável do planeta, perdeu quase toda a vazão de água. O território do tamanho de Portugal, Suíça, Bélgica e Holanda somados foi, em boa parte, arrasado. Numa só sentada. Resultado do mesmo pendor à irresponsabilidade de governantes, nos diversos escalões, que fizeram secar recursos e brigadas de vigilância para proteger a região. Caíram em 48% as multas por violações e infrações, embora essas seguissem em escalada gritante naquele cinturão ambiental. Multiplicou-se a área devastada. Dados consolidados do INPE apontam que os incêndios provocados e os desmatamentos ilegais cresceram 210% entre janeiro e 15 de setembro último, em comparação com o mesmo período do ano passado. O fogo decorrente consumiu uma área equivalente a 2,5 milhões de hectares. Até aqui. Já corresponde ao território inteiro de um estado como Sergipe ou a quase quatro vezes o tamanho do Distrito Federal. Menos fiscais e mais burocracia levaram não apenas ao tímido número de autuações lavradas em períodos de estiagem como o atual. Também contribuíram para o crescimento exponencial de aventureiros, que ali desembarcam, fazem suas tendas e saem à cata de oportunidades nessa hoje terra de ninguém. O garimpo nas redondezas de Poconé, por exemplo, no limite norte do Pantanal Mato-grossense, explodiu. Virou parte do problema. Exemplo intolerável de como a interferência e exploração indevidas podem ferir, aniquilar e frear o florescer da natureza que deveria ser preservada e é, na prática, espoliada. Com a complacência dos responsáveis que tudo veem e nada fazem na defesa sustentável do patrimônio. Será que entendem a dimensão dos erros por omissão? Ao contrário. Negam a realidade. Disfarçam. Fingem não ter nada a ver com o drama local. E há de se questionar: Como não? Mentem e deixam a “boiada” de irregularidades passar para depois lavarem as mãos? No mínimo deveriam cair em si sobre a leviandade latente. O assoreamento dos rios, em consequência de lavouras e pastagens em sua cabeceira, denunciam intervenções fora dos limites que contribuem para o drama. É mais um delito praticado a céu aberto. O Rio Taquari, por exemplo, já foi quase completamente soterrado por milhões e milhões de toneladas de terra que desceram com as enchentes pela via tortuosa dos desmatamentos sem controle. O ecossistema pantaneiro paga um preço caro, insuportável, por tanto descaso. O bote mortal contra o bioma é armado na moita. Devastam e quando a floresta está esgotada, enfraquecida, com a vegetação morrendo pelas motosserras, vem o golpe final por meio de tochas sendo acesas para botar fogo em tudo. E a mata arde de novo. Por dias, semanas, às vezes meses, restando os poucos troncos torrados, teimosos, fincados como palitos na paisagem calcinada. Para que tudo ali se transforme em pastagem, compondo um quadro deplorável de abandono do esplendor daquela reserva. O Pantanal está morrendo!

Não podemos ser lenientes, refratários e indulgentes com os culpados. Não foi dada a menor atenção à catástrofe em andamento. Quando os encarregados pela proteção e preservação acordaram para o quadro, já era tarde. O fracasso do controle oficial está estampado nas cenas abomináveis da mortandade na região. Em meio à angústia geral dos brasileiros, o Poder Federal foi capaz de reservar meros R$ 3,8 milhões de verba para remediar o mal. Uma esmola vergonhosa. Afronta diante dos esforços para se perdoar R$ 1 bilhão de dívidas de igrejas evangélicas, na articulação até aqui considerada essencial pelo capitão do Planalto. O paralelo sobre os dois empenhos mostra a desproporção gritante e serve para efeito comparativo das prioridades estabelecidas em Brasília. As autoridades teimam em dizer que nada é o que parece. Cinicamente brincam de promover as belezas naturais do Pantanal com vídeos propagandísticos falsos para entreter os áulicos, daqui e do resto do planeta. São biocidas do ambiente, carniceiros da fauna, espoliadores da riqueza nacional, oportunistas de plantão que não parecem entender o valor da vida selvagem e das florestas. Meros depredadores da Mata Atlântica que, por omissão ou estímulo indevido, semeiam a tragédia. Quem há de zelar por esse patrimônio para as próximas gerações? Que vozes irão se levantar para defender o que nos foi legado? A luta da preservação não pode mais ficar circunscrita a ecologistas, defensores ocasionais e ambientalistas de profissão. É devida e urgente a mobilização geral. Setores mais sensatos, líderes globais, empreendedores conscientes, produtores do agronegócio, alguns parlamentares e hoje até mesmo portentos do sistema financeiro já acordaram para a importância da missão. O capital internacional está deserdando do Brasil pela apatia nessa área vital para a humanidade. Comprometemos nosso futuro. Deixamo-lo virar joguete nas mãos de personagens inconsequentes, hoje aboletados no poder. É preciso resgatar o tempo perdido nesse campo. Não dá para ficar à mercê dos aloprados de plantão. Nem se venha falar, por falar, de mera fatalidade sazonal. Não é bem assim. Ardem no Pantanal, no momento, os órfãos de nossa resignação. Estão sendo sacrificados no altar do desprezo sistêmico, abandonados por um viés ideológico extremista, estapafúrdio e negacionista, com interesses escusos, que deitou raízes no poder e deixou o Pantanal queimar. Não acreditem nesses aventureiros de palanque, insolentes tratantes da boa fé. A joia ambiental do País está ardendo. É fato. Acordamos na era do Pantanal em extinção e não conseguimos reagir. O estupor e o choque pela perda devem ceder lugar à resposta. O Pantanal precisa de você, antes que nada mais reste que não as cinzas.