JUSTIÇA Jack Kirby: processo contra a Marvel por direitos autorais (Crédito:Divulgação)

Esqueça Neil Gaiman, Robert Crumb ou o mestre Will Eisner: o nome mais icônico dos quadrinhos é o americano Stan Lee, criador da Marvel. Há, porém, um detalhe: enquanto esses outros artistas eram desenhistas, o pai dos super-heróis mais populares da atualidade nunca foi o responsável direto pelos traços de suas criações. Qual teria sido a contribuição dele, então, para o sucesso desse universo?

A premissa é o ponto central de “A Espetacular Vida de Stan Lee – A Biografia Definitiva do Criador de Homem-Aranha, Homem de Ferro, X-Men, entre outros heróis icônicos da Marvel”, da editora Agir. O autor, Danny Fingeroth, trabalhou com Stan Lee durante 18 anos e entrevistou o próprio cartunista, além de colegas, familiares e até detratores, criando uma obra livre de maniqueísmos — algo difícil de alcançar em um ambiente tão mítico e estimulado por fanáticos admiradores. Para tornar a história ainda mais confusa, Stan Lee não era sequer o dono da Marvel, mas apenas um funcionário muito bem remunerado. Pode parecer a mesma coisa, mas não é: as discussões relativas aos direitos autorais sobre os personagens ocupam boa parte do livro e, no longo prazo, beneficiaram Martin Goodman, dono da empresa e primo de Lee.

O que fazia Stan Lee? Para compreender seu papel é preciso voltar ao início dos anos 1940, quando o jovem Stanley Martin Lieber havia deixado o emprego de redator de obituários de celebridades para ser admitido pela editora Timely, dirigida por Goodman. Dois anos depois, em 1942, já era o editor do título mais famoso: a revista estrelada pelo Capitão América, criado para incentivar os americanos na luta contra o nazismo.

PARCEIRO Steve Ditko: desenhista responsável pelo Homem-Aranha e vilões como o Duende Verde (Crédito:Divulgação)

Gente como a gente

Em 1961, a carreira de Stan Lee estava estagnada. Diz a lenda — e o livro — que, no dia em que foi pedir demissão ao primo, Goodman lhe sugeriu criar uma revista com um grupo de super-heróis atuando juntos. A principal concorrente, a DC Comics, vendia como água graças à Liga da Justiça, que reunia Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha e Aquaman. Lee topou o projeto e, junto com o ilustrador Jack Kirby, criou e lançou a HQ dos Quatro Fantásticos. Começava aí a discussão sobre a paternidade dos personagens. Lee fazia os diálogos; Kirby criava os enredos e era o desenhista. Com o sucesso, Goodman exigiu novos heróis — a dupla apresentou o Incrível Hulk e Thor no ano seguinte. Com outro parceiro, Steve Ditko, Lee criou o Homem-Aranha. E, assim, tornou-se um editor cada vez mais poderoso, além da voz dos super-heróis dentro da Marvel – e também fora dela, já que era o responsável pelos editoriais e pelas mensagens direcionadas aos leitores.

LANÇAMENTO “A Espetacular Vida de Stan Lee”
Danny Fingeroth Editora Agir
Preço: R$ 79 (Crédito:Divulgação)

Leitor de William Shakespeare, seu mérito indiscutível foi apresentar heróis “imperfeitos”, característica que se opunha à perfeição da DC. Enquanto o Super-Homem era vulnerável apenas diante da Kryptonita, por exemplo, o Homem-Aranha brigava com o chefe e com a namorada. Ou seja: os protagonistas da Marvel tinham super-poderes, mas, no fundo, eram gente como a gente.

A briga com a DC continuou fora das páginas: quando a concorrente lançou a série de TV do Batman, com Adam West, em 1966, a Marvel apostou nos desenhos animados. Kirby e Ditko deixaram o emprego, mas Lee seguiu trabalhando com outros desenhistas, sempre no mesmo formato: era co-autor de tudo, além de único porta-voz em encontros com fãs e entrevistas. Quando Goodman deixou a empresa, em 1972, Lee foi promovido a presidente. Apesar do ótimo salário, porém, ainda era um funcionário. Com a aprovação da Lei dos Direitos Autorais pelo congresso americano, em 1976, começou a guerra de processos entre Kirby e Ditko, de um lado, e Lee e a Marvel, do outro. Anos mais tarde, em 2005, foi a vez de Lee entrar na Justiça: levou US$ 10 milhões, além do salário anual de US$ 1 milhão. É uma migalha perto do que a Marvel fatura anualmente — só em 2019 foram US$ 5 bilhões. Lee morreu em 12 de novembro de 2018, mas, para o público, sua figura continua viva nos seres mitológicos que reinam no universo da cultura pop.