Quem quiser compreender a arte latino-americana a partir da segunda metade do século 20 deve obrigatoriamente se debruçar sobre a produção efervescente de León Ferrari (1920-2013). Um dos raros artistas a trabalhar simultaneamente com algumas das correntes artísticas marcantes do período, como o abstracionismo, o construtivismo e uma arte conceitual profundamente militante, ele ainda desempenhou um papel fundamental na articulação e difusão de ideias, sobretudo entre Argentina e Brasil, onde viveu entre 1976 e 1984, fugindo da violenta repressão da ditadura de seu país. Faz mais de dez anos que São Paulo recebeu sua última exposição de fôlego: uma premiada retrospectiva organizada na Pinacoteca do Estado. Foi pensando nessa dificuldade em ter uma visão ampla da obra de Ferrari que Lisette Lagnado concebeu a exposição Por Um Mundo Sem Inferno, que abre nesta quarta, 11, para o público na Galeria Nara Roesler, que também leva obras do artista para a SP-Arte.

“Procurei trazer obras de diferentes décadas e todas as técnicas que ele trabalhou. A ideia é enfatizar um León orgânico, que não tem necessariamente fases”, explica a curadora. Há três anos concebendo essa mostra, baseada exclusivamente no acervo da família do artista, Lisette selecionou mais de 70 pinturas, esculturas, desenhos e colagens, realizadas entre 1962 e 2009. A montagem coloca propositalmente em sintonia diferentes experimentações propostas por ele ao longo de mais de meio século. Há espaço para as obras de caráter mais militante e crítico, sua faceta mais conhecida, como os comentários contundentes sobre a aliança espúria entre o poderio militar americano e a ditadura argentina, ou de seu corrosivo anticlericalismo. O caráter opressor da religião, sobretudo a católica, é um de seus temas recorrentes. Em vários de seus trabalhos explicita com ironia fina a milenar repressão sexual e manipulação política vinculada à iconografia religiosa e artística. Como diz Lisette, sua tese principal consiste em afirmar que “o patrimônio artístico da cultura ocidental está assentado sobre promessas de castigos e torturas, tendo o inferno e o apocalipse como imperativos categóricos de uma humanidade ímpia”. Daí o título da exposição ter sido tirado da obra Carta ao Papa – Por Um Milênio Sem Infernos. Provocativo e incansável, Ferrari escreveu ao papa (no caso João Paulo II) pedindo a revogação do inferno. E acaba por transformar a missiva no centro de uma composição na qual associa o texto a uma trama gráfica. Mal sabia ele que, algum tempo depois, o papa Francisco negaria – mesmo que depois desmentido em nota oficial do Vaticano – a existência do inferno em conversa com o editor do La Repubblica.

Mas Ferrari não é apenas um combatente de ideias, um exemplar representante do conceitualismo latino-americano que, diferentemente do norte-americano, incorpora também uma clara postura política à arte. “Ferrari é um artista experimental de boca cheia”, enfatiza Lisette, ao demonstrar que seu interesse foi também trazer para a mostra suas facetas menos conhecidas, como as pesquisas acerca da linguagem, da escrita como signo, e de uma impressionante coleção de iconografias que reuniu ao longo da vida.

A exposição, que fica em cartaz até 30 de maio, sofreu um revés quando a galeria descobriu, ao retirar as obras no depósito, que o aeroporto havia aumentado o preço cobrado para guardar o material de forma desproposital e unilateral. De um momento para o outro, o custo das exposições internacionais em cartaz atualmente (além da mostra de Ferrari, a Nara Roesler está trazendo um importante recorte de fotógrafos nova-iorquinos) subiu em R$ 37 mil. Se essa situação se prolongar provavelmente o País verá uma redução de suas mostras internacionais.

Esse resgate da obra de Ferrari não envolve apenas a mostra na galeria. Contempla também uma jornada de discussões sobre seu trabalho, a realizar-se amanhã, no MuBE, com a presença de Pablo León de la Barra, do Guggenheim (NY); Anna Ferrari, da Fundação Augusto e León Ferrari Arte e Acervo (FALFAA); Victoria Northoorn, que dirige o Museu de Arte Moderno de Buenos Aires, e a artista Regina Silveira. Ele também tem peças na mostra Esculturas para Ouvir, no MuBE. Além disso, a filial da Galeria Nara Roesler em Nova York deve inaugurar uma pequena mostra de colagens de sua autoria sobre violência nos finais dos anos 1980 e 1990.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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