Considerado um dos principais nomes do humor da atualidade, o comediante Marcelo Adnet foi obrigado a se reinventar durante a pandemia. Confinado em sua própria casa desde março de 2020, ele encontrou na internet um imenso território a ser explorado para produzir seus conteúdos. Com apenas um celular, Adnet grava vídeos que têm feito sucesso nas redes sociais e na Globoplay. Geralmente são pequenos quadros em que o humorista satiriza políticos e autoridades a partir das imitações que sempre o acompanharam desde os tempos da MTV. Seu trabalho mais recente, que viralizou na internet, foi a transmissão das sessões da CPI narrada por imitações de Galvão Bueno. Hoje, aos 39 anos, Adnet ainda está vinculado à TV Globo. Em entrevista à ISTOÉ, ele explicou o que o motiva a fazer humor com política, criticou a perseguição que sofre nas redes sociais por parte dos bolsonaristas e disparou contra o presidente Bolsonaro. “Somos o País da vergonha e do negacionismo. O País que não quer se tratar. E com um governo que se aproveita da situação para tentar tirar proveito próprio. Isso é muito grave e muito assustador”, disse.

Despido de qualquer personagem, o que Marcelo Adnet tem a dizer sobre a gestão da pandemia no País?
Falaria que estamos passando por um momento muito grave. Desde que a Covid surgiu, a gente começou a agir errado. Éramos o País do futebol, do café, do Pelé e hoje somos o País da vergonha e do negacionismo. O País que não quer se tratar, que não quer se cuidar. O País governado por quem não acredita no vírus, mas que mata tanta gente todos os dias. E com um governo que se aproveita dessa situação para tentar tirar algum proveito próprio, que não consegue fazer o básico. Fazer o que qualquer governo razoável faria, que é concentrar esforços na vacinação e gastar dinheiro para publicidade de medidas de isolamento, do uso de máscara. O governo não fez isso. Temos um presidente falando diariamente a favor da aglomeração. Estamos numa luta civilizatória. Ainda tem uma grande parte da população que acredita e repete esse discurso e que, no final das contas, é assassino. Isso tudo é muito grave e muito assustador.

Você acha que, com seu humor, será possível atingir o público que apoia Bolsonaro?
Acho que sim. São pessoas que, na verdade, não estão concordando com o presidente na essência da mensagem, mas na forma, pela agressividade. Essas pessoas gostam do discurso violento e preconceituoso. Acho que o humor é muito poderoso, porque essas pessoas não ligam muito para a ciência. Para elas, a piada é algo extremamente nocivo. Para Bolsonaro, por exemplo, ser chamado de veado ou brocha é algo muito mais grave do que ser tachado de genocida. O que é genocida? “Ah, é mimimi da esquerda. Agora veado, não. Brocha, não. Sou imbrochável e incomível”, diz o presidente. É um governo que tem medo da piada do tio do pavê. É por isso, talvez, que Mário Frias tenha ficado tão chateado e a Secom tenha dedicado um texto enorme para falar mal do meu humor. Isso quer dizer que as minhas piadas atingiram eles de maneira muito forte. É importante a gente ter a consciência de que a piada pode desestruturar esse grupo.

Você se sente alvo dos bolsonaristas?
É genial Bolsonaro ter conseguido fazer essa manobra. Ele conseguiu pegar um cara como eu, que não sou um ator da política, para atacar do nada. De repente, acordei sendo bandido. As pessoas acreditam mesmo que eu não gosto do Bolsonaro porque eu não ganho nada da Lei Rouanet. Nunca ganhei. Eu ganho dinheiro da Globo, que é um dinheiro privado. As pessoas acham que eu faço piadas do Bolsonaro porque a mamata acabou no governo dele e que agora estou desesperado, na pobreza. As pessoas precisam ser realmente muito burras para achar que um repórter, ou um ator da Globo, é responsável por alguma coisa. Isso é uma estratégia que eles fizeram e que é muito bem-sucedida. Ninguém nunca tinha feito isso: antagonizar toda a mídia e antagonizar todo o Brasil. Criaram um Fla x Flu que não existe.

Mas como tem sido esse bombardeio contra você nas redes sociais?
Eu não fico mais assustado. Já fiquei, quando esse movimento estava começando. Hoje, acho natural. Tem uma galera que sempre me bate. E faz acusações. “O Adnet encobriu que abusaram da esposa dele.” O que é isso? Pelo amor de Deus, claro que não. Outros dizem: “não é à toa que o pai dele foi preso por ter sido bicheiro”. E aí eu perguntei: “pai, o senhor foi preso?”. E ele: “não, claro que não”. Isso é uma coisa que se normaliza no dia a dia dessa gente. Me chamam de filho da puta, canalha, escroto, bandido, corrupto, ladrão e covarde. Ou: vou te matar, vou te dar um tiro, vou te enfiar porrada. É algo que faz parte do dia por causa desse senhor, o Jair Bolsonaro. Culpa dele que eu, todos os dias da minha vida, seja xingado de todas as maneiras.

Você consegue conviver bem com isso?
Estou contente de conseguir viver em paz. Porque as coisas que importam não são só essas. Se o cara está me xingando ou não, eu não quero entrar na vida dele para convencê-lo a apagar um xingamento. Tenho que seguir a minha vida. Eu tenho total consciência de como estou me posicionando. Merece, sim, posicionamento, trabalho, porque o momento pede. Eu vou continuar me posicionando, vão continuar me xingando. É assim que tem que ser. Eu não vou me calar. Eu não consigo. A história vai registrar tudo isso. Vai registrar quem ficou do lado de Bolsonaro e quem ficou calado. Talvez não faça a menor diferença, porque talvez as marcas continuem gostando de quem não fale nada, patrocinando uma classe artística calada. Porque uma classe artística falante é automaticamente deixada de lado.

A pandemia obrigou as pessoas a trabalhar em casa. Como tem sido isso para você?
O home office é uma lição. A gente perde figurino, cenário, iluminação. Você fica reduzido a uma produção. Ao mesmo tempo em que há essa perda, você também se vê com as armas que tem, que são os jovens. São pessoas que só têm um celular na mão. Se o Glauber (Rocha), lá atrás, dizia: “câmera na mão e uma ideia na cabeça”, acho que hoje também tem isso, só que é: “o smartphone na mão e uma ideia na cabeça”. Foi aí que comecei a fazer imitações de políticos e do BBB. Você perde tanta estrutura, mas ganha liberdade. Aquilo que era para ser algo ruim, me proporcionou uma oportunidade única. Sobre o humor é aquilo: é humor com tragédia e a maneira como o governo lida com a pandemia. E, agora, temos a própria CPI. São momentos em que eu estava querendo sublinhar questões, para que a gente prestasse atenção. É a comédia guiando nosso olhar para esse lugar.

Mas você tem dificuldades?
É difícil para caramba andar nessa linha. É bem sutil. É bem tênue a linha que divide o nosso momento, hoje, do humor e da tragédia. Mas o humor tem uma função social. Ele é importante, chama a atenção, coloca uma luz sobre um assunto, chama o povo para debater. Cada um tem seu humor. E com a minha formação de jornalista, acabo acreditando bastante nesse humor crítico, político e crônico. Uma crônica social. E é o que venho fazendo nesses tempos de pandemia: uma crônica, de dentro de casa, falando sobre o mundo fora de casa.

Do ponto de vista psicológico, como é ter de encarar isso como ser humano e, ao mesmo tempo, ter que divertir as pessoas?
Para mim é um alívio psicológico. Não falar sobre o assunto é que é uma tortura para mim. Acho que é coisa de jornalista. O jornalista quer falar sobre o assunto que está marcando o momento mais delicado do País. Para mim, seria uma tortura psicológica não fazer nada sobre este momento. Seria uma tortura psicológica fazer um humor do tipo pastelão, torta na cara, em um momento tão grave como o que passamos. Se alguém fizer, não tem problema. É uma forma de as pessoas se entreterem. Para mim, não. Eu tenho que falar sobre o que está me incomodando. E a gente está cheio disso agora. É horrível: gente perdendo parentes e amigos para a Covid. Quer coisa pior do que essa? É um dos piores momentos da nossa história. E fazer humor nesse momento, se posicionar através do humor, é botar isso tudo para fora.

Você sempre gostou de imitar políticos? Tem alguma nova imitação que você já está preparando?
Minhas primeiras imitações foram Lula, Collor e Brizola, na eleição de 89. Mas fazendo de brincadeira. E me divertia, eu era criança e gostava. E isso acabou ficando comigo, de perceber jeitos, vozes de qualquer um, não só de políticos. Como o político estava na TV o tempo todo, todo mundo conhecia, então era uma boa imitação. Era uma coisa que eu gostava. Hoje em dia eu não tenho nada na manga. Mas para mim o “ter uma carta na manga” é estar aberto sempre. Mesmo que eu não tenha planejado, daria para fazer imitação do Omar Aziz ou do Randolfe Rodrigues, por exemplo.

De onde surgiu a ideia de você transmitir as sessões da CPI com a narração do Galvão Bueno?
Foi uma coisa que eu comecei a fazer de casa. Estava vendo a CPI e percebi que ela é um evento muito tenso, importante. E que o Brasil inteiro está ligado. Boa parte do Brasil está sabendo o que está rolando e está acompanhando. As pessoas, nas redes sociais, diziam: “cara, está faltando uma narração, hein?”. Aí peguei o celular e quando rolava algum momento bizarro e engraçado, eu começava a filmar aqui de casa o que passava na televisão, e daí narrava. E postei. Logo em seguida, o pessoal da Globoplay me ligou dizendo: “Vamos fazer essa dublagem? É rapidinho, é fácil, não tem que gravar nada”. Agora o editor me manda as imagens já selecionadas e eu narro por cima.

Qual a intenção por trás dessa ideia?
É uma tentativa de transformar uma CPI que é longa, pesada, e fazer um resumo emocionante, com os principais lances. O Brasil, que no imaginário já era o País do futebol, hoje é o País do negacionismo. Faz todo o sentido ter o Galvão lá, conduzindo e costurando esse momento, que é tão decisivo para o Brasil. A analogia cabe. O futebol no Brasil é muito importante. Mas a política roubou o lugar do futebol nessa coisa da paixão nacional. É um trabalho simples e legal para trazer os olhos das pessoas para a CPI.

O que falta para derrotar Bolsonaro em 2022?
Falta um movimento popular. O antibolsonarismo tem a maioria de suas vertentes ligadas à elite. Porque eu acho que a emergência dos povos de periferia em sobreviver mais um dia, comer mais um prato de comida, é tão grande que as pessoas não conseguem pensar em: “hoje vou nas ruas para protestar contra Bolsonaro”. Eles estão correndo para pegar o próximo prato de comida e arrumar emprego. Além disso, tem a pandemia, tachando quem sai na rua como negacionista. Bolsonaro está gostando desse cenário, em que só ele pode ir às ruas. Com isso, ele pinta a oposição como elitista e ele como homem do povo. Eu gostaria de ver uma terceira via. Seria saudável, mas isso não aconteceu ainda. Ciro Gomes é um nome forte, embora já tenha se equivocado, atirando na esquerda.