No começo da pandemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro decidiu transformar todos os brasileiros em cobaias das suas teses irresponsáveis sobre a doença.

Ele fez tudo que pôde para sabotar as medidas de distanciamento social que especialistas do mundo todo apontavam como necessárias, diante de um vírus sobre o qual não se sabia nada. Ele também incentivou o uso de medicamentos que não tinham eficácia comprovada no tratamento de enfermos: agiu como garoto propaganda da cloroquina e gastou milhões de reais na produção e na estocagem do remédio. 

Seu desprezo à ciência foi absoluto. Seu descaso com as mortes, que devem ser mais de 160 000 até o final deste mês, revoltante.

Agora, no entanto, o presidente tem a desfaçatez de invocar critérios científicos para justificar uma decisão política.  

Na manhã desta quarta-feira, ele foi ao Twitter para assegurar que o governo federal não vai destinar dinheiro à compra de doses da Coronavac, a vacina contra o coronavírus desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e pelo Instituto Butantã, de São Paulo. 

Segundo Bolsonaro, a vacina ainda está em fase de testes, não tem eficácia comprovada pelo Ministério da Saúde nem certificação da Anvisa. Não haveria, portanto, justificativa para investir no medicamento.

“O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, escreveu Bolsonaro.

Numa entrevista no começo da tarde, o presidente reiterou o mesmo raciocínio, ressaltando suas supostas preocupações médicas, e acrescentou a ele uma insinuação: a de que “a vacina chinesa de João Doria” tem preço elevado, e poderia estar no centro de alguma negociata. “É uma vacina que ninguém quer”, disse.   

São tantas perversões que é difícil saber por onde começar. 

Jamais uma vacina foi aplicada em larga escala antes de cumprir um extenso protocolo de testes. E não será diferente no caso da pandemia. Muitos imunizantes contra o covid-19 estão sendo pesquisados. A comunidade científica de todo o mundo está alerta para avanços e retrocessos em cada caso. No Brasil ou em outros países, ninguém fala em quebrar protocolos para pôr rapidamente no mercado um remédio que não sirva para nada ou possa matar pacientes.

Ou melhor: Donald Trump, o candidato por quem Bolsonaro torce na eleição americana deste ano, chegou a brincar com a ideia de queimar etapas. Portanto, ninguém que não seja Trump pensou em trapacear no processo de aprovação de uma vacina. Trata-se de um não-assunto. 

Assim, a mera insinuação que os brasileiros possam ser usados como ratos de laboratório serve apenas para alimentar paranóias e teorias da conspiração. É um exemplo clássico de fake news. 

A segunda afirmação estapafúrdia de Bolsonaro é que não faz sentido negociar um produto que ainda não ficou pronto. Ora, o governo federal fez exatamente isso quando se associou à Universidade Oxford, da Inglaterra, na pesquisa para outra vacina, com um investimento de quase dois bilhões de reais.

Infelizmente, a pesquisa inglesa tem enfrentado contratempos. Hoje foi anunciada a morte de um dos voluntários que participam dos testes. Não se sabe ainda se a pessoa recebeu um placebo ou uma dose do remédio. Se a segunda hipótese se comprovar, pode ser um duro golpe para o desenvolvimento da vacina. 

Isso tornaria ainda mais racional a decisão de reservar doses da Coronavac. Pois era disso que se tratava: ontem, depois de uma reunião com governadores de vários estados, que desejam ter a oportunidade de imunizar a população o mais rápido possível, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello havia encaminhado ao Instituto Butantã um protocolo de intenções para adquirir lotes da vacina, se e quando eles estiverem disponíveis. 

Era uma espécie de reserva do produto, que Bolsonaro desfez com a mensagem de hoje. Isso pode criar uma situação em que apenas os paulistas tenham acesso à imunização num primeiro momento, enquanto o restante do país aguarda. 

Bolsonaro deve saber que as consequências desse cenário seriam calamitosas para ele. A pressão que hoje é feita apenas por governadores preocupados em ter uma alternativa de tratamento se alastraria por toda a população. 

Por isso, há duas possibilidades. Numa delas, o Ministério da Saúde e a Anvisa atrasam ou embargam a liberação da vacina. Seria uma ação criminosa, e quero acreditar que até mesmo o governo Bolsonaro esteja acima dela. 

Na segunda hipótese, os políticos que hoje apoiam Bolsonaro tentam criar condições para que uma volta atrás não pareça uma derrota completa. 

A verdade é que Bolsonaro nunca ligou para a ciência, e continua não ligando. Ele não está preocupado com o dinheiro público. Seu único incomodo é com o benefício político que possa advir da “vacina chinesa do João Doria”.

Ele ficou furioso com Eduardo Pazuello porque o acordo para fornecer o medicamento foi anunciado pelo governador de São Paulo, que deve ser seu adversário em 2022, e por isso não apenas cancelou o trato como também transformou Pazuello em mais um alvo de desmoralização pública. 

Não há dúvida que Doria faz tudo o que pode para transformar em mérito pessoal o que não passa de boa sorte – o fato de que o projeto ao qual o seu governo se associou avança em bom ritmo. Ele nada fez para evitar que a vacina se tornasse um motivo de discórdia política.

Ainda assim, cabia a Bolsonaro engolir em seco e ocupar-se da única coisa que interessa: garantir que o Brasil tenha acesso a uma vacina o mais rápido possível. Seria um ato de responsabilidade e desprendimento.

Que a maneira como Bolsonaro está lidando com a questão da vacina sirva de alerta para quem acreditou que ele estava curado de seus arroubos. Continuamos sendo cobaias de seus caprichos e maluquices.