Oficialmente parte da instável Somália, república separatista obteve de Israel o primeiro reconhecimento estrangeiro em 34 anos. Estrategicamente perto do Iêmen, separatistas buscam alianças diplomáticas.Um território árido do Chifre da África, a Somalilândia se considera uma república independente há 34 anos. Mas foi só na sexta-feira (26/12) que a autoproclamada nação que oficialmente faz parte da Somália obteve seu primeiro reconhecimento por parte de um governo estrangeiro. No caso, de Israel.
O gesto israelense agitou o xadrez geopolítico da África, com reprimendas do governo central da Somália, da União Africana (UA) e diversos governos ao redor do mundo.
Um antigo protetorado britânico entre 1884 e o final dos anos 1950, a Somalilândia foi unificada em 1960 ao resto do que hoje é a Somália, que por sua vez tinha sido uma colônia italiana. Parte da população da Somalilândia rejeitou a decisão desde o início, sentimento que daria origem a um movimento separatista pela volta das antigas fronteiras da era colonial.
Em meio ao caos da sangrenta guerra civil que tomou a Somália a partir de 1991, o território da Somaliândia declarou unilateralmente independência. As autoridades centrais da Somália, lidando com conflitos em todos o país e até mesmo a perda da capital, Mogadíscio, para grupos rebeldes, nunca conseguiram retomar o controle da Somaliândia.
Apesar do isolamento diplomático, o território de 176 mil quilômetros quadrados tem moeda, passaporte e Exército próprios, além de realizar eleições periódicas. A sua população é de 4,5 milhões de pessoas, de acordo com o governo local, e a maioria é muçulmana. Em contraste com o resto da Somália, que até hoje lida com conflitos internos, Somalilândia é uma raro território estável na região.
A Somalilândia também está estrategicamente localizada no Golfo de Aden, dividindo também fronteiras com Djibuti e Etiópia. Do outro lado da estreita faixa do oceano Índico, está o Iêmen, palco de uma guerra brutal que desde 2015 antagoniza potências regionais e globais. Já o vizinho Djibuti, outra antiga colônia que no passado era chamada de "Somalilândia francesa", abriga bases militares dos Estados Unidos, da China, da França e vários outros países.
"Risco à paz e estabilidade"
A Somália rapidamente rejeitou o reconhecimento da Somalilândia por Israel, afirmando que considera a região parte integral do seu território soberano.
Enquanto isso, a decisão foi celebrada em várias cidades da Somalilândia no domingo, com milhares de pessoas se reunindo num estádio da capital Hargeisa. A bandeira israelense foi hasteada ao lado da bandeira da Somalilândia numa cerimônia transmitida ao vivo pelas televisões da autoproclamada república.
"Damos as boas-vindas a todos os países que reconhecem a nossa existência", disse Jama Suleyman, residente em Hargeisa. "Para o povo da Somália, os nossos vizinhos não devem se preocupar com esta vitória. Sabemos que estão fazendo barulho, mas nada impedirá a Somalilândia de mirar alto."
Já o presidente da UA, Mahmoud Ali Youssouf, reiterou que a Somalilândia é parte do território somali. Segundo ele, qualquer tentativa de minar a soberania da Somália representa um risco à paz e a estabilidade na África.
Vários outros instaram respeito à soberania da Somália, incluindo Qatar, Arábia Saudita, Egito, Turquia, Estados Unidos, China e União Europeia. Uma declaração assinada por 21 países de maiorias muçulmanas alertou para "repercussões sérias" para a paz e a segurança no Chifre da África, no Mar Vermelho e a nível internacional.
Israel contra houthis
Embora não haja razão explícita para a decisão diplomática, a Somalilândia está próxima do Estreito de Bab al-Mandab, onde milícias houthi do Iêmen já repetidamente atacaram navios mercantes supostamente ligados a Israel.
Após o início da guerra entre Israel e o Hamas, em outubro de 2023, os houthis começaram a atacar Israel com mísseis e drones, numa expressão de apoio aos palestinos na Faixa de Gaza. A força aérea israelense também atingiu alvos ao redor do Iêmen.
O jornal The Times of Israel apontou que o acesso ao território e ao espaço aéreo da Somalilândia tornaria mais fácil atacar e monitorar os houthis. Embora os ataques tenham sido suspensos desde o cessar-fogo em Gaza, os houthis, apoiados pelo Irã, disseram que não permitirão que uma parte da Somália sirva como base para Israel.
A decisão israelense foi "uma postura hostil dirigida contra a Somália e seus vizinhos africanos, bem como contra o Iêmen, o Mar Vermelho e os países situados em ambas as margens do Mar Vermelho", disse o líder do grupo, Abdul-Malik al-Houthi.
O autoproclamado governo da Somalilândia, por sua vez, afirmou que cooperará com Israel em temas de diplomacia, comércio, tecnologia, agricultura, gestão da água, saúde e segurança. "A Somalilândia busca uma parceria que seja transparente, pacífica e benéfica para ambos os países," disse o ministro de Relações Exteriores, Abdirahman Dahir Adam.
A Somália assumirá em janeiro a presidência rotativa do Conselho de Segurança da Organizações Unidas (ONU), que convocou uma reunião de emergência sobre o tema.
Busca por alianças
A Somalilândia se proclama como "o país mais democrático do leste da África" e "uma terra de paz, progresso e potencial", enquanto engaja há anos em esforços para obter o reconhecimento de países.
Especialistas avaliam que a sua relativa estabilidade e ganhos democráticos, aliados à obtenção de investimento estrangeiro por conta própria, fortalecem a causa separatista.
Em novembro de 2024, o líder da oposição local foi eleito presidente da Somalilândia, na mais recente de uma série de eleições consideradas justas nas últimas duas décadas. À época, a embaixada dos Estados Unidos na Somália disse que o "impressionante histórico de eleições e transferências de poder pacíficas é um modelo para a região e além."
Os meses anteriores à votação foram marcados por uma escalada de tensão entre Etiópia e Somália, depois que a Etiópia assinou um memorando de entendimento com a Somalilândia.
Nos termos do acordo, a Somalilândia arrendaria um trecho de 20 quilômetros de costa à Etiópia para o estabelecimento de uma base naval. Com uma população estimada em mais de 120 milhões, a Etiópia é o país sem litoral mais populoso do mundo.
Em troca, a Etiópia reconheceria a independência da Somalilândia. A Somália disse estar disposta a entrar em guerra, pois considera a Somalilândia parte de seu território.
A posição dos EUA em relação aos separatistas também levante dúvidas. No fim de semana, Trump rejeitou reconhecer a independência do território. No entanto, membros do Partido Republicano de Trump já manifestaram apoio a uma iniciativa nesse sentido.
Em dezembro de 2024, o congressista Scott Perry apresentou um projeto de lei propondo o reconhecimento formal dos Estados Unidos à Somalilândia.
Isso ocorreu após a publicação, em abril de 2023, do Projeto 2025, um roteiro para o segundo mandato presidencial de Trump compilado pela Fundação Heritage,um influente think tank da direita americana.
O documento menciona dois territórios africanos na sua seção sobre a África Subsaariana — a Somalilândia e o Djibuti — e propõe "o reconhecimento da soberania da Somalilândia como uma proteção contra a deterioração da posição dos EUA no Djibuti", que vem sendo palco de crescente influência da China.
jps/ht (AP, AFP, dpa, Reuters)