Eles demoram duas horas e meia para ir da favela de Brás de Pina até o centro de treinamento do judô em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. No caminho, Popole Misenga, de 24 anos, e Yolande Bukasa, de 28, conseguem brincar e trocar algumas palavras alegres, em português, com os vizinhos da comunidade. Até pouco tempo atrás, o semblante dos dois era bem diferente. Por trás da testa franzida de Popole e do olhar distante de Yolande, as lembranças da árdua vida na República Democrática do Congo e da traumática viagem ao Brasil ainda estavam frescas. “Agora eles já sorriem”, diz o treinador Geraldo Bernardes. Os judocas sobreviveram à guerra civil que devasta o país africano há mais de 20 anos, mas perderam familiares em ataques de rebeldes e passaram dias peregrinando até encontrar o campo de refugiados na capital, Kinshasa. Para esquecer a destruição e a solidão, os órfãos eram incentivados a praticar esportes. Foi no judô que ambos, então com menos de 10 anos de idade, encontraram forças para não desistir de viver. Anos depois, se tornaram atletas profissionais e vieram ao Brasil disputar o Campeonato Mundial de Judô em 2013. Mais uma decepção: eles dizem ter sido trancados e abandonados em um hotel no Rio de Janeiro pela Federação de Judô do Congo. Mas, desde que o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou a criação do Time de Atletas Olímpicos Refugiados, eles veem o sonho se renovar com a oportunidade de participar de uma competição global. Mais do que medalhas, querem a chance de ser vistos pelo mundo e, quem sabe, encontrar suas famílias.

Os primeiros treinos no Brasil não foram fáceis. Nem para os refugiados, nem para o treinador Geraldo ou para os atletas brasileiros que dividiam o tatame. Judo_3testePopole e Yolande chegaram ao Instituto Reação, organização não-governamental que promove o desenvolvimento social pelo esporte, por meio da Cáritas, entidade que ajuda refugiados no País. “No início, ninguém queria treinar com eles”, diz Geraldo. O quimono era emprestado e o dinheiro da passagem de ônibus, dado pelo Instituto. A forma física também não ajudava. Ambos estavam muito debilitados para acompanhar os treinos. Ainda assim, quando pisavam no tatame, não era para perder. “Quando eles perdiam no Congo, ficavam numa cela, presos por semanas e com a alimentação cortada pela metade”, diz o treinador. O estilo agressivo de luta criou um problema sério com os atletas brasileiros. Para vencer, os refugiados esperavam até os minutos finais e aplicavam um duro golpe. Muitos brasileiros se machucaram ao dividir o tatame com a dupla. O clima era tenso e o treinador precisou conversar com os demais judocas para pedir paciência com os novatos.

Hoje, a mentalidade é outra. Depois de intensos meses de adaptação, Popole e Yolande aprenderam a técnica brasileira da luta. Ele tem alto poder de concentração. Ela é extremamente ágil. Os dois aprenderam a usar a agressividade a seu favor. A mistura de estilos rendeu bons frutos. “Eles entram em uma luta com o olhar de tigre, sempre querendo ganhar”, diz Bernardes. Em julho do ano passado, chegou ao Instituto Reação a notícia de que a Rio-2016 seria a primeira Olimpíada com participação de um time de refugiados. O COI pediu aos comitês de cada país que indicassem os candidatos. Foram identificados 43 atletas, que recebem bolsa-auxílio para treinar. Entre cinco a dez serão selecionados para o time oficial, que será definido em junho.

Yolande Bukasa e Popole Misenga tiveram dificuldades para se enturmar com judocas brasileiros. Estilo agressivo de luta causou protestos dos colegas
Yolande Bukasa e Popole Misenga tiveram dificuldades para se enturmar com judocas brasileiros. Estilo agressivo de luta causou protestos dos colegas (Crédito:Stefano Martini)

 

Aos 7 anos, Popole morava com a mãe, a avó e mais três irmãos no povoado de Bukavu, leste da República Democrática do Congo. A lembrança mais forte que tem da África é o barulho dos tiros dos soldados que destruíram sua casa e sua vizinhança. Ele não se lembra bem de como tudo aconteceu, mas, daquele dia em diante, passou a caminhar sozinho. “Fiquei numa floresta por oito dias procurando ajuda”, diz. “Depois, mais uma semana em um barco de refugiados até o campo de Kinshasa.” Ele recebia um pouco de comida todos os dias, mas aquilo não era suficiente. Em dias de festa no campo de refugiados, era difícil conter a vontade de chorar ao ver jovens e crianças próximos com os pais. “Eu estava sempre sozinho, pensava que viveria mesmo assim”, diz. Até que um dia um amigo lhe apresentou ao judô. A arte marcial fez Popole esquecer a ausência da família, ainda que por algumas horas por dia. “Comecei a lutar todos os dias e percebi que me sentia mais calmo.”

Yolande também precisou travar uma batalha pessoal para sobreviver no Congo. Aos 10 anos, chegava da escola quando uma bomba explodiu na vizinhança de Bukavu. A detonação a separou da mãe, do pai e dos quatro irmãos. “Pensei: ‘Por que Deus me mandou no mundo para me separar da minha família?’”, diz ela. Yolande chorava sem parar, imóvel. Até que avistou um helicóptero sobrevoando a região para resgatar sobreviventes. O destino da menina também foi o campo de refugiados em Kinshasa. “Chorei por uma semana, não conseguia comer, passava mal. Até que me acostumei.” Certo dia, começaram a ensinar esportes aos refugiados. Futebol, basquete e judô. “Falaram que todo mundo tinha que aprender alguma coisa na vida e ter algo para fazer”, lembra Yolande. Ela começou a lutar com 12 anos – e o judô logo se tornou uma paixão. No campo de Kinshasa, Popole e Yolande foram escolhidos pela Federação de Judô do Congo para a seleção nacional. Disputavam torneios por toda a África. “Se perdesse a medalha, ficava dez dias sem comer, numa prisão de madeira”, diz Yolande, que lembra ter sido mandada duas vezes para o confinamento.

Em 2013, veio a primeira oportunidade que prometia transformar a vida de Popole e Yolande. Os dois foram convidados para viajar ao Brasil e disputar o Campeonato Mundial de Judô no Rio de Janeiro. Com pouca bagagem e a esperança de se projetar para o mundo, viajaram cheios de planos. Popole chegou a disputar uma luta e voltou ao hotel. Yolande nem lutou. Quando se deram conta, eles dizem, estavam sós. A delegação os havia abandonado, levando todo o dinheiro que tinham para a viagem e os tickets para alimentação. Yolande não aguentou o confinamento e saiu em busca de ajuda. Sem conseguir se comunicar, passou semanas vivendo nas ruas do Rio de Janeiro. “Disseram que eu ia morrer, que ninguém me ajudaria”, lembra. Popole também foi para as ruas e depois para um albergue.

Em 2013, Yolande e Popole viajaram ao Rio para o Mundial de Judô. Eles dizem que foram abandonados pela delegação congolesa e vagaram pelas ruas durante vários dias
teste Em 2013, Yolande e Popole viajaram ao Rio para o Mundial de Judô. Eles dizem que foram abandonados pela delegação congolesa e vagaram pelas ruas durante vários dias (Crédito:Stefano Martini)

Dias depois, se encontraram e foram buscar ajuda na Cáritas do Rio de Janeiro. Chegaram ainda vestindo o uniforme da equipe de judocas do Congo. “Percebi que tinham uma identificação muito grande com o esporte porque eles permaneceram muito tempo com o crachá do campeonato pendurado no pescoço”, diz Aline Truller, coordenadora do programa de atendimento aos refugiados. “Foi até difícil encaminhá-los para outras atividades.” A entidade ajudou a dupla a pedir refúgio à Polícia Federal. Os dois receberam ajuda financeira temporária até conseguirem os primeiros empregos. O amor pelo judô era nítido. Mesmo quando trabalhavam em outras funções, reservavam um tempo para ir até a pracinha de Brás de Pina e praticar exercícios físicos para não perder o condicionamento. Em 2014, a Cáritas recebeu um comunicado do Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, avisando das vagas olímpicas. “O judô já me salvou uma vez, quero que me ajude de novo”, afirma Popole.

Desde a indicação feita pelo COB, o dia a dia deles mudou. Um dos treinadores mais experientes do judô brasileiro foi escalado para treinar a dupla. Geraldo Bernardes, que já participou de quatro Olimpíadas, decidiu dedicar meses ao treinamento dos congoleses. Praticar judô em tempos de dificuldade extrema estimulou a dupla a desenvolver habilidades exclusivas. Ambos deverão disputar na categoria peso médio – Popole com 90 kg e Yolande com 70kg. Na turma, ele é dono do melhor “seoi nage”, o arremesso do adversário sobre as costas, que requer força e velocidade. Ela consegue desestabilizar qualquer adversário com o “harai goshi”, golpe de quadril que também exige coordenação.

Os atletas selecionados para o time de refugiados serão recebidos na Vila Olímpica com as outras delegações. O programa Solidariedade Olímpica será responsável por cobrir custos de viagem e outras despesas. Os critérios para seleção incluem nível esportivo, status oficial de refugiado reconhecido pelas Nações Unidas e histórico pessoal. “Queremos mandar uma mensagem de esperança a todos os refugiados do mundo”, afirmou Thomas Bach, presidente do COI. Popole e Yolande já recebem uma bolsa-auxílio do COB e uma cesta básica. Muita coisa mudou desde que recomeçaram as vidas no Brasil. Popole namora e tem um filho de pouco mais de um ano. Yolande divide a casa com uma amiga e sonha encontrar um canto para morar sozinha. Nos rostos de ambos, o sorriso sai muito mais fácil. Mas ainda falta algo. “Vou à Olimpíada, vou encontrar minha família e pagar uma passagem para eles virem até aqui”, diz Popole. Yolande completa: “Quero encontrá-los para contar tudo que passei na vida.”

POR DENTRO DO TIME DE REFUGIADOS

_43 atletas indicados
_5 a 10 atletas escolhidos para a delegação
_Contarão com uniformes próprios, suporte de uma comissão técnica e chefe de delegação. Ficarão hospedados na Vila Olímpica
_Nível esportivo, status de refugiado confirmado pelas Nações Unidas e histórico pessoal serão os critérios analisados para a escolha dos atletas
_A iniciativa do COI faz parte da Agenda 2020, fundo criado para levar esperança e auxílio a atletas refugiados de todo o mundo
_US$ 2 milhões é o valor investido
_15 comitês olímpicos fazem uso do fundo