O mundo anda tão complexo que apenas um poeta com formação de biólogo poderia explicar o momento atual sob o ponto de vista objetivo, físico, mas também em relação a toda a sua dimensão humana. É o caso do escritor Mia Couto, um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa. Apesar de sua relação próxima com o Brasil, o intelectual admite que está revendo suas opiniões. “No início, era difícil ter uma atitude racional porque eu era apaixonado pelo País e pelo povo brasileiro”, afirma. “Depois, fui percebendo que essa ideia era um pouco romântica, idealizada, e não correspondia aos diferentes ‘Brasis’ que fui conhecendo.” Dono de uma prosa que mistura o realismo mágico das histórias orais de seu país, Moçambique, e uma visão internacional de quem já foi traduzido para mais de 30 países, Mia fala sobre as consequências da pandemia do coronavírus no mundo, a literatura em língua portuguesa e o novo livro, “O Mapeador de Ausências”, que sai por aqui no início do ano pela Companhia das Letras.

Antonio Emílio Leite Couto, de onde vem o apelido Mia?
Da minha infância. Quando tinha três anos, pedi a meus pais que me chamassem assim por causa dos gatos que viviam em casa. Eles acharam graça, mas levaram a sério o meu pedido.

Você é um escritor popular no Brasil e muito querido do público brasileiro. A partir de Moçambique, como você vê a situação do País hoje?
Eu pensava que conhecia o Brasil, mas acho que não conheço tanto assim. Digo isso porque esse governo atual foi eleito, não resultou de alguma incursão externa ou algo que aconteceu contra a escolha do povo. É isso que me causa estranheza. Apesar de eu achar curioso que o presidente ainda tenha um índice de popularidade significativa, há qualquer coisa que eu não conhecia no Brasil.

Em qual aspecto específico?
Estou revendo meu conhecimento sobre o Brasil. No início era difícil ter uma atitude racional porque eu era apaixonado pelo País, pelo povo, vivia em estado de graça na minha relação com o Brasil. Depois fui percebendo que essa ideia era um pouco romântica, idealizada, e não correspondia aos diferentes “Brasis” que fui conhecendo. Aos poucos compreendi as tensões e contrastes sociais, as questões de raça, todo o conjunto de coisas que não estavam bem resolvidas na raiz. Amo o Brasil com todos os conflitos internos, mas atualmente, pela primeira vez, quando me dizem que vou ao País, não tenho mais o mesmo entusiasmo pelo Brasil.

Por causa da situação política do País?
Sim, mas não só por causa desse governo em particular. Também porque há polarizações que me levam a ter que me vigiar, ver o que digo, falo. Esse não é o país que conheço, sofro com o que o Brasil está passando hoje

Além de escritor, sua formação é de médico e biólogo. Como está vendo as consequências da pandemia?
Nosso espanto em relação a essa nova situação não é tanto por causa do perigo imediato à saúde. O que nos assusta é que perdemos a capacidade de reconhecer o poder que a gente imaginava ter, a solução, o domínio, o controle sobre nossas vidas. De repente, um pequeno vírus revela toda a nossa fragilidade. Acho que isso deveria ser o grande aprendizado.

O que podemos aprender com a pandemia?
A espécie humana notou que não é o centro de tudo, mas apenas a pequena parte de algo maior. Como Darwin, quando descobriu que somos um entre muitos seres livres, ou Freud, ao perceber que não somos feitos só de consciência. Ele viu que ali havia um inconsciente, espécie de sótão escuro que não dominamos. Ou ainda como Copérnico e Galileu, quando constataram que a Terra não era o centro do universo.

Seria o momento de repensar nossa própria natureza como seres humanos e como espécie biológica?
Sim, temos a tendência de colocar a natureza como uma coisa divinizada, a grande Mãe que merece a nossa proteção. Não é o ponto. Esse conceito continua a nos manter fora do que importa e em posição de superioridade, “vamos salvar a natureza”. O grande ensinamento é percebermos que somos a parte de uma orquestra regida a um nível microscópico. Os seres que determinam os grandes processos da vida são as bactérias e os vírus. Somos dispensáveis e, no entanto, todo o discurso da natureza é montado sobre a floresta, o oceano, tudo que é sensível e visível para nós, tudo que está em uma escala visual. A natureza para a gente é o fulano que gosta do cão, do gato, das árvores. Mas a natureza é feita de muitas outras coisas. Seria a grande oportunidade para repensar nosso lugar, nosso papel.

Havia uma certa utopia de que o coronavírus traria uma conscientização, mas parece que aos poucos as coisas voltam ao velho normal. Foi ingenuidade acreditar que as pessoas mudariam?
Acho que, na verdade, vamos voltar ao “velho anormal”. Como sempre essas crises são resolvidas às custas dos que são mais frágeis, mais fracos. Quem vai pagar a fatura são os que já estavam pagando a velha normalidade. Não sou muito otimista porque o medo, como temos hoje, nunca traz nada positivo. O medo pede uma solução simples, messiânica, salvadora.

Qual é o perigo da politização da vacina, como está acontecendo no Brasil?
A saúde não deveria estar ao sabor do mercado. Ela não pode ser salva pela privatização ou pensada como objeto de lucro. Seria preciso apostar nos grandes sistemas nacionais públicos de saúde. Infelizmente, a investigação científica continuará a ser feita por critérios comandados pelas grandes empresas farmacêuticas e guiados pelo lucro. A política cavalga em cima disso. As mudanças que precisamos são tão profundas que vão levar muito mais tempo do que imaginamos.

Temos ao mesmo tempo outro problema natural no Brasil, com queimadas na Amazônia e no Pantanal. Como biólogo, como você vê a defesa do meio ambiente?
Essa luta é muito séria e sou parte dela. Ela não pode ser uma coisa de moda. Há uma tentativa de diluir isso em uma campanha quase religiosa contra o tema. É uma luta profundamente política. Dizem que “a humanidade está destruindo a floresta” ou “poluindo o mar”. Não é a humanidade. Os grandes operadores da destruição são as grandes empresas e os grandes interesses. Não é o cidadão comum, que é convencido a economizar a água, fechar a torneira, não gastar eletricidade. Mas não é ele quem vai resolver isso. Embora essa atitude seja necessária, pela questão da educação, ele deve perceber que ele não é a solução. O discurso ambientalista foca muito em diluir essa responsabilidade, como se todos nós estivéssemos nos comportando mal. É o grande perigo.

Você escreve em língua portuguesa e é traduzido para o mundo inteiro. A pandemia trará o fim da globalização?
A negação da globalização já estava em curso antes, com a ascensão de nacionalismos e governos populistas. Já havia um discurso de que o outro é a explicação do mal. Vamos assistir às duas coisas ao mesmo tempo: a ideia de que a origem dos problemas é sempre externa e a tendência de modernização dos mercados. O que haverá é uma mudança dos donos e parceiros. Teremos outros vencedores desse jogo. É um debate, sobretudo, entre os patrões da globalização.

Você atua em diversas áreas dentro da literatura: poesia, crônica e jornalismo. Qual é sua voz verdadeira, aquela em que você se expressa melhor?
Acho que sou um poeta. Uso os outros gêneros, mas apenas para dizer algo que deveria ser dito pela linguagem poética, dentro do simbolismo que a poesia permite. Sou sempre um poeta fazendo incursões em outras áreas.

Os jovens hoje trocam mensagens curtas e parecem sofrer de uma ansiedade digital permanente. Ainda há espaço para a poesia?
É um caminho conflituoso. Nesse mundo tão fragmentado, tão feito do efêmero, também convivemos com algo novo. O espaço da poesia, que estava morrendo no espaço convencional do livro, tem ocupado as redes sociais. Os jovens abriram um novo espaço. Não é muito o meu mundo, mas acredito que as pessoas hoje têm esse desejo de revelar um pouco da sua intimidade, querem mostrar-se e dizer quem são, mesmo dentro de um universo que representa justamente a negação dessa individualidade. Mas acredito que há um espaço novo para a poesia, sim.

Há muito se discute o fim do livro. A pandemia acelerou a dominação das telas sobre o livro impresso?
Acho que o livro de papel ainda vai continuar a existir. Os e-books ainda vendem pouco, é uma porcentagem marginal.

Você vê novos escritores de língua portuguesa?
A literatura em língua portuguesa se constrói sem saber que existe, é praticamente uma figura mítica. Não conhecemos os novos autores brasileiros, e o Brasil também conhece pouco o que se produz em Moçambique. Esse desconhecimento é completamente generalizado. Falamos da literatura, mas mesmo nós, que fazemos literatura, não a conhecemos. Acredito, pelo que vejo em Moçambique, que há uma enorme vitalidade. Essa nova geração urbana está aprendendo graças ao confronto com as certezas antigas. É um território fértil para aparecerem novas vozes. Pena que o Brasil não tem acesso à nova corrente de poetas moçambicanos.

Você usa muito a mitologia, o realismo mágico. A nova geração manterá essas histórias vivas ou partirá para uma narrativa urbana mais cosmopolita, globalizada?
Em Moçambique esse mundo, que a gente acredita ser mitológico, fantástico, é muito presente. Se vou descrever uma cena com uma árvore, um rio, é impossível que essa árvore seja apenas uma árvore, como em São Paulo. É sempre uma criatura que conta histórias, habitada por espíritos. Mesmo para um jovem urbano, ele é habitado por esse universo.

Livro novo à vista?
O parto está acontecendo enquanto falamos. Essa semana publico “O Mapeador de Ausências”. O lançamento será na pequena cidade da Beira, em Moçambique, onde nasci. O livro deve sair no Brasil no primeiro semestre de 2021. É uma história muito centrada na minha infância e adolescência, no lugar que me ajudou a me tornar um contador de histórias.

É uma biografia?
Tem uma ou outra história inventada, mas intencionalmente. O livro fala sobretudo sobre meu pai, que introduziu a poesia na minha vida. É uma biografia mentirosa, como todas são.