O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou nesta semana uma lei que proíbe o uso de dispositivos eletrônicos portáteis (como celulares) nas escolas públicas e privadas do país, tanto durante as aulas quanto nos intervalos.
+Aparelhos poderão ser usados em ‘casos específicos’; veja o que muda com a sanção
Uma restrição que começou com legislações locais, casos de São Paulo e Rio de Janeiro, ganha efetividade nacional a partir do ano letivo de 2025, unindo o Brasil a nações como China, França, Espanha, Dinamarca e Itália. Para Cláudia Costin, isso foi possível porque a sociedade brasileira construiu um “consenso” em torno da necessidade de dissociar os celulares e o ambiente escolar.
Nesta entrevista ao site IstoÉ, a ex-secretária municipal da Educação do Rio de Janeiro, diretora global de Educação do Banco Mundial e atual professora da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas) e da Universidade de Harvard analisou os avanços que a medida poderá representar e como o uso dos aparelhos ainda desafia a educação básica no país.
Leia a íntegra
IstoÉ Antes da sanção presidencial, essa lei teve apoio de entidades com diferentes orientações para a educação e foi aprovada no Congresso por parlamentares da esquerda à direita. Como o tema se tornou consensual?
Cláudia Costin A sociedade construiu esse consenso, essa percepção de que vale a pena limitar o uso do celular na escola a casos específicos. De que, neste ambiente, a criança e o jovem precisam, além de prestar atenção na aula e adquirir competências cognitivas, desenvolver uma espécie de entrada na sociedade de forma mais ativa, o que depende de construir conexões, interagir e brincar.
Alguns fatores consolidaram o texto aprovado, como a expansão da restrição no Rio de Janeiro — válida também no recreio –, e a forte atuação de entidades de mães de alunos. Essas mães apontaram, por exemplo, a dificuldade na moderação individual, dado que mesmo quando não enviavam celulares para seus filhos, o contato com colegas que usavam o aparelho no colégio os fazia desejar usar também, naturalmente. Uma restrição geral ameniza o obstáculo.
IstoÉ A pesquisa TIC Educação de 2023 mostrou que 92% das instituições de ensino já estabeleciam algum tipo de moderação para o uso dos dispositivos móveis pelos estudantes. Havia necessidade de uma lei federal?
Cláudia Costin Havia um consenso entre os pais, que era correspondido pelas escolas, mas sem uma regulação do ponto de vista legal, o ônus [de restringir o uso] ficava todo para os professores, profissionais que já estão em estado de sobrecarga por suas funções habituais.
A lei estadual de São Paulo tem um ponto de acerto muito grande, que é dar às escolas a função de determinar um local para o armazenamento dos aparelhos, proibindo-os de ficar nas mochilas dos alunos. Esse tipo de baliza existe porque o ambiente escolar transcende as regras acordadas pelos pais e o próprio controle dos funcionários dessas instituições, o que impõe a necessidade de pensar em outros instrumentos.
“Sem uma regulação, o ônus de restringir o uso ficava para os professores, que já estão sobrecarregados”
IstoÉ O texto sancionado prevê que os dispositivos eletrônicos móveis sejam usados para atividades pedagógicas ou didáticas em que os professores julguem existir essa necessidade. Há um contexto em que os celulares contribuem para a educação escolar?
Cláudia Costin A tecnologia é importante para a formação das crianças e jovens, mas o problema dos celulares é a portabilidade. Esse fator os transforma em um forte distrator, tanto na sala de aula quanto nos espaços em que ocorre a interação entre alunos, a brincadeira, o que dá sentido à especificidade da proibição [aparelhos portáteis].
Há um saldo positivo [do uso] até aqui, por exemplo, no espectro autista, em que um grande número de alunos depende muito do suporte de imagem para o aprendizado. Desenvolver a competência de pesquisa no meio digital e promover a educação midiática são funções essenciais, em especial no ensino fundamental e no médio. A escola ainda tem o papel de orientar seus alunos quanto à segurança nas redes sociais, o que contribui para evitar exposição indevida e prevenir casos de abuso e pedofilia. Para tudo isso, contudo, há possibilidade de uso de equipamentos próprios das escolas, dispensando o aparelho pessoal.
IstoÉ No livro “A Geração Ansiosa” (Companhia das Letras, 2024), Jonathan Haidt associa o aumento do uso de celulares por crianças e adolescentes à maior incidência de depressão e ansiedade nesta faixa etária. A preservação da saúde mental é a justificativa mais forte para a restrição, ou há comprovação de uma piora no desempenho escolar a partir da presença dos dispositivos?
Cláudia Costin O córtex pré-frontal, parte do cérebro responsável pelo autocontrole, não fica maduro antes dos 25 anos. Portanto, colocar um instrumento viciante até para adultos na frente de uma criança por horas representa um obstáculo muito severo para o processo de aprendizado. Na prática, enquanto o professor tenta ensinar, a criança está preocupada com seu próprio celular, desconcentrada das atividades internas, em equipe e mesmo das metodologias ativas, porque esse é o efeito do vício.
“Celulares têm sido obstáculos severos para o aprendizado”
IstoÉ Nesta mesma obra, o autor recomenda práticas como a inibição do acesso a smartphones antes dos 14 anos e do registro em redes sociais antes dos 16. Falta mobilização para levar as restrições para fora das escolas?
Cláudia Costin Mesmo com a lei, é fundamental que haja medidas voluntárias. Os pais precisam adotar um papel para que, em casa, essas crianças e adolescentes não abusem do celular, em contraposição à redução no período escolar.
As propostas levantadas por Haidt, mesmo que ótimas, são condicionadas pela dinâmica de cada família, e é complexo criar um arcabouço legal para elas. Não há espaço para uma definição por lei, naturalmente, no ambiente doméstico. Mas há espaço para conscientização, e faltam campanhas neste sentido.