No preâmbulo da exposição de Clarice Lispector no IMS SP, entrei na livraria e li em uma publicação com título de jornal – Folha da Tarde – um “artigo indefinido” que começava por especular por que todo mundo teria medo de Virginia Wolf. “A romancista inglesa foi um tipo acabado de onésima. Onésima, segundo classificação de Jaime Ovalle, é a pessoa que duvida, sorri, desaponta, gela, com um senso de humor que aterroriza as pessoas de fácil ebulição emocional”, diz o autor Paulo Mendes Campos.

Clarice Lispector é uma onésima. Uma das primeiras coisas que se entende ao entrar na exposição Constelação Clarice é que a crônica, que já foi apontada como um gênero menor pela crítica literária, encampa o paradoxo maior da obra ficcional de Clarice: a tensão produtiva entre a vida prosaica, doméstica, íntima e familiar – a casa –, e seu reverso: os espectros, temores, pulsões, violências, estranhezas, incômodos. No modo como percebe a presença viva das coisas e se refere à vida secreta dos objetos domésticos, Clarice flerta – com intimidade desconcertante – com o conceito Unheimliche, estudado por Freud no começo do século 20.

No primeiro segmento da exposição, a apresentação das 20 pinturas realizadas pela escritora entre 1975 e 1976 expõem essas zonas nebulosas da vida cotidiana de maneira inconteste. A gruta, a noite, o medo, o terror, a raiva, a escuridão, o inverno, o inferno, a explosão são seus temas.

“No quadro, que chamei de ‘Terror’, arranquei de mim, talvez através da magia, todo o horror que um ser sente no mundo”, escreveu Clarice em “Literatura e magia”, texto que preparou para ler no I Congresso Mundial de Bruxaria, em agosto de 1975, em Bogotá, na Colômbia. “A tela era pintada de preto, quase no centro havia uma terrível mancha amarelo-escura, e dentro dessa mancha algo vermelho, preto e amarelo-vivo. Parecia uma mariposa sem dentes querendo gritar, sem conseguir. (…) Olhar para esse quadro me faz mal”.

Em texto do catálogo, a curadora Veronica Stigger chama a atenção para, nos livros dos últimos anos, como Água Viva e um Sopro de Vida, a preferencia de Clarice Lispector por narradoras e personagens pintoras. Extratos desses livros são exibidos nas paredes do espaço expositivo junto às telas com títulos que poderiam nomear contos ou crônicas as autora: “Sol da meia-noite”, “Cérebro adormecido”, “Tentativa de ser alegre”, “Perdida na vaguidão”…

O decorrer da exposição, a duplicidade incômoda da casa é explorada nos trabalhos de artistas como Eleonore Koch, Ione Saldanha, Lygia Clark, Mira Schendell, Wilma Pimentel, Djanira, Judith Lauand e Leticia Parente. A exposição tem como recurso curatorial a proposição de diálogos entre a literatura de Clarice e a produção plástica de artistas mulheres que foram suas contemporâneas próximas ou distantes, conhecidas ou não.

Há diversos trabalhos de Maria Bonomi, que foi grande amiga e mãe do afilhado de Clarice. Mas de Grauben, pintora nascida no Ceará em 1889 e falecida no Rio em 1972 – só há uma tela, que foi adquirida pela escritora e está em uma sala dedicada à sua coleção. O dia em que conheceu a pintora é descrito por Clarice na crônica “Uma tarde feliz como embandeirada”, publicada em 7 de setembro de 1968, no Jornal do Brasil. “Sua casa de súbito para mim parece um bosque encantado, úmido, denso, rico com todas as invisíveis folhas verdes e transparentes”, escreveu.

Maria Grauben, Sem titulo, 1968

Entre os objetos pessoais de Clarice, animados ou inanimados agora na sala do IMS, a pintura de Grauben, descrita como “um grande pássaro azul, entre água e pavão, uma enorme borboleta, uma flor toda aberta, plantas e todos os pontilhados que ela usa como fundo”, foi certamente um ponto de luz no sol da meia-noite da sua literatura.

Constelação Clarice

Até 27/2/22

Instituto Moreira Salles, São Paulo