Coluna: Artevida

Paula Alzugaray é curadora, critica de arte e editora da revista seLecT. Pós doutoranda em História, Crítica e Teoria da Arte na ECA USP. É autora do livro "Regina Vater: Quatro Ecologias" (Oi Futuro/Fase 3, 2013) e dos documentários “Tinta Fresca” (2004), prêmio de Melhor Media Metragem na 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e de "Shoot Yourself" (2012), Prêmio em Poéticas Investigativas, no Cine Move Arte 2012.

Sobre os que aterrorizam

Sobre os que aterrorizam

No preâmbulo da exposição de Clarice Lispector no IMS SP, entrei na livraria e li em uma publicação com título de jornal – Folha da Tarde – um “artigo indefinido” que começava por especular por que todo mundo teria medo de Virginia Wolf. “A romancista inglesa foi um tipo acabado de onésima. Onésima, segundo classificação de Jaime Ovalle, é a pessoa que duvida, sorri, desaponta, gela, com um senso de humor que aterroriza as pessoas de fácil ebulição emocional”, diz o autor Paulo Mendes Campos.

Clarice Lispector é uma onésima. Uma das primeiras coisas que se entende ao entrar na exposição Constelação Clarice é que a crônica, que já foi apontada como um gênero menor pela crítica literária, encampa o paradoxo maior da obra ficcional de Clarice: a tensão produtiva entre a vida prosaica, doméstica, íntima e familiar – a casa –, e seu reverso: os espectros, temores, pulsões, violências, estranhezas, incômodos. No modo como percebe a presença viva das coisas e se refere à vida secreta dos objetos domésticos, Clarice flerta – com intimidade desconcertante – com o conceito Unheimliche, estudado por Freud no começo do século 20.

No primeiro segmento da exposição, a apresentação das 20 pinturas realizadas pela escritora entre 1975 e 1976 expõem essas zonas nebulosas da vida cotidiana de maneira inconteste. A gruta, a noite, o medo, o terror, a raiva, a escuridão, o inverno, o inferno, a explosão são seus temas.

“No quadro, que chamei de ‘Terror’, arranquei de mim, talvez através da magia, todo o horror que um ser sente no mundo”, escreveu Clarice em “Literatura e magia”, texto que preparou para ler no I Congresso Mundial de Bruxaria, em agosto de 1975, em Bogotá, na Colômbia. “A tela era pintada de preto, quase no centro havia uma terrível mancha amarelo-escura, e dentro dessa mancha algo vermelho, preto e amarelo-vivo. Parecia uma mariposa sem dentes querendo gritar, sem conseguir. (…) Olhar para esse quadro me faz mal”.

Em texto do catálogo, a curadora Veronica Stigger chama a atenção para, nos livros dos últimos anos, como Água Viva e um Sopro de Vida, a preferencia de Clarice Lispector por narradoras e personagens pintoras. Extratos desses livros são exibidos nas paredes do espaço expositivo junto às telas com títulos que poderiam nomear contos ou crônicas as autora: “Sol da meia-noite”, “Cérebro adormecido”, “Tentativa de ser alegre”, “Perdida na vaguidão”…

O decorrer da exposição, a duplicidade incômoda da casa é explorada nos trabalhos de artistas como Eleonore Koch, Ione Saldanha, Lygia Clark, Mira Schendell, Wilma Pimentel, Djanira, Judith Lauand e Leticia Parente. A exposição tem como recurso curatorial a proposição de diálogos entre a literatura de Clarice e a produção plástica de artistas mulheres que foram suas contemporâneas próximas ou distantes, conhecidas ou não.

Há diversos trabalhos de Maria Bonomi, que foi grande amiga e mãe do afilhado de Clarice. Mas de Grauben, pintora nascida no Ceará em 1889 e falecida no Rio em 1972 – só há uma tela, que foi adquirida pela escritora e está em uma sala dedicada à sua coleção. O dia em que conheceu a pintora é descrito por Clarice na crônica “Uma tarde feliz como embandeirada”, publicada em 7 de setembro de 1968, no Jornal do Brasil. “Sua casa de súbito para mim parece um bosque encantado, úmido, denso, rico com todas as invisíveis folhas verdes e transparentes”, escreveu.

Sobre os que aterrorizam

Maria Grauben, Sem titulo, 1968

Entre os objetos pessoais de Clarice, animados ou inanimados agora na sala do IMS, a pintura de Grauben, descrita como “um grande pássaro azul, entre água e pavão, uma enorme borboleta, uma flor toda aberta, plantas e todos os pontilhados que ela usa como fundo”, foi certamente um ponto de luz no sol da meia-noite da sua literatura.

Constelação Clarice

Até 27/2/22

Instituto Moreira Salles, São Paulo