De um lado, Oprah Winfrey, apresentadora de televisão, americana, negra. A mulher mais rica dos Estados Unidos. Ao ganhar o prêmio Cecil B. DeMille, concedido às mais importantes figuras da indústria do audiovisual dos Estados Unidos, no domingo 7, durante o Globo de Ouro, fez um discurso firme e inflamado pelos direitos das mulheres. “O que eu sei, com certeza, é que falar sua verdade é a ferramenta mais poderosa que todos nós temos. E eu estou especialmente orgulhosa e inspirada por todas as mulheres que se sentiram fortes o suficiente e empoderadas o suficiente para falar e compartilhar suas histórias pessoais.” Oprah fala das mulheres do movimento Time´s Up, um fundo que pretende ajudar vítimas de assédio sexual e violência machista. Do outro, Catherine Deneuve, atriz, encabeçando um manifesto de 100 mulheres francesas questionando o uso do termo assédio pelo movimento americano, minimizando as violências sofridas pelas várias vítimas que vieram à imprensa para dar relatos sobre abusos sofridos em postos de trabalho em Hollywood. “Defendemos uma liberdade [dos homens] de importunar”, diz, em certo trecho da carta. Diante da leviandade com que tratam os casos sérios das denúncias feitas, na tentativa de diminuir um movimento que ajuda várias pessoas e dá força para que outras não tenham medo de se esconder, apanhou. E perdeu feio.

“Defendemos uma liberdade de importunar. Essa febre de enviar os ‘porcos’ ao abatedouro, longe de ajudar as mulheres a ganhar autonomia, serve na realidade aos interesses dos inimigos da liberdade sexual” Manifesto assinado por Catherine Deneuve e outras 99 francesas (Crédito:Britta Pedersen)

São discursos diferentes que partem de realidades antagônicas. Se as artistas francesas nunca passaram por situações de assédio, não cabe a elas dizer a uma mulher se pode ou não sentir-se ofendida com uma investida de um homem mais poderoso que ela no ambiente de trabalho — basicamente o foco do movimento Time’s Up. “Quando as americanas denunciam situações graves, não é só importunação, é um episódio que leva à interdição do trabalho e das expressões pessoais”, afirma Leila Linhares Barsted, fundadora e coordenadora executiva da ONG CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação).

Leila, que participou da elaboração do texto da Lei Maria da Penha, explica as diferenças nas realidades dos dois grupos que precisam ser levadas em consideração. “Aparentemente, a francesas estão em posições de maior poder e podem reagir de forma mais contundente. Mas isso não é uma realidade em países como os Estados Unidos ou o Brasil, onde mulheres que denunciam abusos são demitidas ou constrangidas”, diz. Para Juliana de Faria, fundadora da ONG Think Olga e criadora das campanhas “Chega de Fiu Fiu” e “Meu Primeiro Assédio”, essas mulheres são influentes e querem manter o status quo do qual desfrutam. “Tudo bem ter um direcionamento pessoal, mas não é certo colocar como parâmetro para todas”, diz. “Elas estão romantizando um cenário que, para outras pessoas, é de violência.”

Para o psicólogo Carlos Eduardo Zuma, um dos fundadores do Instituto Noos, que atua na prevenção da violência de gênero, o lado bom desse manifesto é suscitar a discussão sobre o que é uma investida, uma paquera, e qual a diferença disso para o assédio. “Assediar é quando alguém usa do seu poder, seja financeiro, profissional, ou de qualquer outro tipo, para obter alguma satisfação sexual”, afirma. Cabe à mulher dizer se o que acontece a ela é ofensivo ou não. Se uma funcionária convive com um chefe que toca seu joelho, tenta roubar beijos, fala de coisas íntimas e envia mensagens com conotação sexual — situações nas quais, para as francesas, não há nada de errado — e vê nisso um constrangimento, há assédio. “Não significa radicalizar nem entrar em um puritanismo, muito menos colocar a sexualidade como algo ruim”, afirma Zuma. “Tem a ver com como cada uma se sente em determinada situação.”

CAMPANHA Estrelas de Hollywood em manifestação contra o assédio, no Globo de Ouro, no domingo 7: vestidos pretos e companhia de ativistas (Crédito:Tara Ziemba)

“Coisas Santas”

No Brasil, o Código Penal não tipifica cantadas ou outras situações em que popularmente se usa o termo assédio. Há a importunação ofensiva ao pudor, que é uma contravenção penal, e o crime de estupro. Se usado o poder ou prestígio para essa aproximação, vira assédio sexual. De outra maneira, não, segundo a promotora de Justiça Gabriela Manssur, especialista em violência contra mulher. Talvez por isso, o uso do termo dê brecha para uma discussão como a que está acontecendo agora. De qualquer maneira, ainda que não esteja incluída em nossa legislação, há um consenso entre especialistas de que, se há constrangimento, os limites do que seria paquera ou brincadeira foram ultrapassados. Gabriela salienta ainda que, dentro do próprio feminismo, é saudável que existam opiniões diferentes. “O problema é quando, como no caso do manifesto das francesas, se critica uma luta legítima e que ajuda muitas pessoas, que levou muito tempo para se configurar e ter a visibilidade de hoje”, diz. “Esse tipo de posicionamento reforça a ideia de que mulheres competem e dá força aos homens para continuarem assediando sem se importarem com o bem-estar alheio.” As críticas a Deneuve e as outras signatárias da carta foram várias, mundo afora, inclusive na própria França. Entre as poucas vozes que as apoiaram está a do ex-ministro italiano Silvio Berlusconi, envolvido em uma série de escândalos sexuais na Itália e condenado por corrupção. Para ele, Deneuve, no manifesto, disse “coisas santas”.