Por um momento, as personalidades de Kevin Bacon e o personagem interpretado por ele na nova série I Love Dick se fundem. Bacon se torna Dick, Dick se torna Bacon. É difícil saber quem está falando ao telefone, do outro lado da linha, em Londres. Como se fosse Dick, o artista e celebridade da pequenina cidade de Marfa, no Estado americano do Texas, Bacon inspira ruidosamente e espera um momento para encontrar as melhores palavras para a primeira resposta. Quando elas chegam, enfim, o fazem com cinismo fundido com humor mordaz. “Bom”, ele diz, pausadamente, e segue: “Eu gostaria de não precisar mais dar entrevistas”. Kevin ri, percebendo o quanto da empáfia do personagem ele acabou de despejar logo diante da primeira questão.

O fato é que Kevin Bacon, aos 58 anos, não precisa mais se preocupar em dar entrevistas para promover o seu novo trabalho. Só a sua presença em determinado projeto deveria ser o suficiente – como tantos outros astros de Hollywood o fazem, principalmente quando se aventuram pelo universo das séries de TV. I Love Dick, nova série da Amazon Prime Video, serviço de streaming tal qual HBO Go e Netflix, com lançamento marcado para esta sexta, 12, é exceção. Por ela, Bacon aceita falar – mesmo que o papo de 10 minutos seja iniciado de forma fria, com silêncios constrangedores e uma dose generosa de honestidade.

Dick, o personagem de Bacon, é a celebridade de Marfa, cidade que existe no mundo real e tem menos de 2 mil habitantes. Artista, ele lidera um centro de pesquisa e auxílio a escritores, poetas, cineastas, dramaturgos, os responsáveis por trazer alguma movimentação ao pequenino município no meio do deserto. Galanteador, ele fala pouco, mora em um rancho e pouco se sabe a respeito dele. Até o sobrenome é mantido em sigilo por um bom período de tempo. “Apenas Dick”, ele conta, na série de TV, ao ser apresentado à cineasta Chris Kraus, a verdadeira protagonista da trama.

A série é uma adaptação do livro de Chris, uma fusão de ficção e trechos autobiográficos. A publicação, nunca lançada no Brasil, saiu em 1997. Ignorado no lançamento, o livro foi redescoberto na última década. O jornal britânico The Guardian, por exemplo, eleva o texto ao nível de “clássico feminista cult”. O nome de Jill Soloway surgiu como certo para a adaptação para a TV. Ela é a criadora de Transparent, série protagonizada por Jeffrey Tambour, um pai de família transgênero. Com humor, drama e uma narrativa bem amarrada, Transparent tem dois Globos de Ouro e várias vitórias no Emmy – foi a série responsável por chamar a atenção para o conteúdo original da Amazon Prime Video, que, na comparação de prêmios, tem dado um baile na Netflix.

Assinada por Soloway e a roteirista Sarah Gubbins, a temática, dessa vez, nasce de uma personagem feminina e passa por conceitos como feminismo, amor, sexo, desejos, monogamia e casamento.

E, por isso, Bacon está do outro lado da linha para as entrevistas sobre I Love Dick. “A ideia era contar uma história a partir de um personagem feminino, ter o olhar dela, a sua perspectiva. E depois questionar esses temas. Há todos os tipos de sexualidade na série e algumas cenas deixarão você desconfortável.”

Na trama, Dick, o personagem de Bacon, que em tradução livre para o português pode significar o órgão sexual masculino, é inserido no centro de um triângulo amoroso. Chris vive um casamento frágil com o filósofo e escritor Sylvere Lotringer, que consegue bolsa no instituto cultural de Marfa para terminar um livro sobre Holocausto e promove a mudança de Nova York para a cidade no Texas. Kathryn Hahn (de Transparent) e Griffin Dunne (Clube de Compras Dallas) criam, em duas cenas, exatamente tudo o que é necessário saber sobre seus personagens. Ela, cineasta, enfrenta a recusa de seu curta pelo Festival de Veneza por questões de direitos autorais de uma música. Ele, veterano, tem sua última grande chance de publicar um livro relevante. Profissional e emocionalmente, a relação está desequilibrada.

Aí entra Dick. Chris o deseja, Sylvere o inveja. A presença do personagem de Bacon cria as tensões sexuais responsáveis por fazer a história seguir em frente. “A sexualidade está, de fato, no centro de tudo”, diz Bacon. “Mas não é violenta ou abusiva. É uma sexualidade saudável, algo que vem do coração. Gostaria que essa série pudesse mostrar para as pessoas como existem formas diferentes de sexualidade – desde que ninguém se machuque com isso, é sempre saudável.”

Tal qual Transparent, I Love Dick não é inteiramente uma comédia nem um drama. Está mais para o meio-termo entre os dois. É uma série inteligente, que desafia o telespectador a pensar nos conceitos debatidos ali, sem fundir a cabeça de ninguém. “Eu gosto quanto a vida real nos faz rir”, avalia Bacon. “Não é uma comédia cheia de piadas. Me interessa é ter essa real emoção na tela. Às vezes, mudávamos as falas no meio das gravações. Jill me perguntava: ‘O que você diria em uma situação como essa?’. Assim seguíamos.”

Embora não tenha a obrigatoriedade de dar mais entrevistas – e não esconda o tédio ao fazer isso -, Bacon faz questão de apoiar I Love Dick. “É claro, se eu pudesse não dar mais entrevistas seria ótimo”, afirma. “Algumas pessoas dizem que faz parte do trabalho. Bom, meu trabalho é decorar falas e interpretar, sabe? Mas eu gosto de dar meu apoio para produções como essa.”

Bacon mantém uma carreira com mais de um filme ou participação em série por ano – sua última aventura na TV foi The Following. Os papéis eram mais conservadores, contudo. I Love Dick parece chegar para mudar esse jogo para o ator que ganhou fama internacional ao interpretar um rebelde dançarino em Footloose – Ritmo Louco, de 1984. Dick e Bacon se fundem de novo. O personagem encontra, em dado momento na série, algo que lhe tire da zona de conforto, tal qual ocorre com o ator com o personagem. “Essa é uma série incomum. É ousada, quebra barreiras da TV. É ótimo fazer parte disso.”