Sistema de saúde do Reino Unido quer replicar serviço oferecido pelo SUS

Sistema de saúde do Reino Unido quer replicar serviço oferecido pelo SUS

""NHSEm cooperação com a Fiocruz, pesquisadores britânicos buscam adotar modelo brasileiro de agentes comunitários para aprimorar sistema de saúde público do país.Depois que terminou a graduação e diante da dificuldade de entrar no mercado de trabalho, Bernardo Xavier, de 32 anos, decidiu mudar de carreira. Trocou a chance de estar em um escritório de advocacia pela função de ir às ruas semanalmente bater de porta em porta.

O trabalho pode parecer inglório comparado à área jurídica, mas na verdade Xavier ocupa um dos postos mais importantes do Sistema Único de Saúde, o SUS. Ele é Agente Comunitário de Saúde (ACS), responsável por aproximar os serviços de saúde básica da população brasileira.

Neste ano, Xavier viajou para Londres com uma missão: trocar experiência com funcionários do sistema de saúde público do Reino Unido, conhecido como NHS (National Health Service, em inglês). A viagem fez parte de uma cooperação internacional que está exportando as metodologias do SUS para inspirar melhorias no modelo britânico.

Pesquisadores do Imperial College de Londres (ICL) estão estudando como replicar no Reino Unido o serviço desenvolvido pelos ACSs no Brasil, por meio de uma cooperação com o Laboratório de Tecnologia, Informação e Resiliência do SUS (ResiliSUS), do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz).

Tudo começou de forma experimental com um projeto-piloto no bairro de Pimlico, em Londres, mas já se expandiu para outras regiões da Inglaterra, como o condado litorâneo da Cornualha, no sudoeste do país. O trabalho dos ACSs no SUS tem chamado a atenção de outros países, como destacou o jornal britânico The Telegraph, como uma alternativa para lidar com o aumento da demanda pelos serviços de saúde e superlotação dos hospitais.

O projeto é também uma tentativa do NHS de se aproximar mais do modelo de saúde pública adotado no Brasil, que prevê acesso universal e integral, ou seja, para todos, independentemente da condição de saúde e indo além de apenas tratar a doença.

Em junho, o governo britânico lançará um plano de dez anos cujo um dos objetivos é dar um foco maior à prevenção e aproximar os serviços da comunidade. Para isso, é previsto levar o serviço de agentes comunitários de saúde para 25 áreas da Inglaterra.

Por que o SUS se tornou uma inspiração para o NHS

A transferência de conhecimento entre o SUS e o serviço de saúde britânico começou por acaso. O então recém-formado médico sanitarista e pesquisador em inovação na área de saúde do ICL Matthew Harris morou no Brasil e atuou durante quatro anos como médico numa unidade de saúde da família em Camaragibe, Pernambuco.

Lá conheceu uma função que não existia no NHS, a dos agentes comunitários de saúde. "Descobri que eles eram realmente essenciais para o meu trabalho como médico de família, tornavam o meu trabalho muito mais fácil, melhor, mais eficiente e eficaz, porque podiam me dizer o que está acontecendo de fato na comunidade", conta Harris.

Segundo ele, diferente do SUS, o NHS atua de maneira reativa. Espera-se que os usuários procurem ativamente o sistema, não existe um trabalho de acompanhamento realizado pelos ACSs. Ao regressar ao Reino Unido, Harris tentou durante anos implementar um projeto-piloto, mas enfrentou resistência. "As pessoas aqui não estavam familiarizadas com o sistema de saúde brasileiro e, por isso, parecia muito diferente", diz.

Em 2021, após mostrar publicações de estudos em revistas internacionais com evidências dos resultados do trabalho dos agentes no Brasil, bem com a pandemia, o projeto foi adiante.

"Temos um modelo [de sistema de saúde] em que o foco está no tratamento, nos procedimentos, nos médicos. Com a pandemia, as pessoas perceberam que não conheciam bem suas comunidades", conta Connie Junghans-Minton, médica que supervisiona o projeto-piloto em Londres.

Em 2022, os médicos começaram a atuar com a Fiocruz. "Eles queriam fortalecer as ações de base territorial, acreditando num cenário de novas adversidades que surgirão, desde novas pandemias a restrição de recursos, guerras e outros eventos que inevitavelmente afetam a capacidade do sistema de sustentar suas funções essenciais", explica Alessandro Jatobá, coordenador do ResiliSUS.

Como funcionam os testes no Reino Unido

Depois de fazer uma pesquisa de viabilidade e retorno de investimentos, Harris e Junghans-Minton convenceram o serviço local a fazer um teste com quatro agentes em 2021, que atuavam cada um com 20 famílias.

Os resultados ampliaram os investimentos e levaram à parceria com a Fiocruz. Atualmente, em Pimlico, são 24 agentes trabalhando em turno completo e cinco em meio período, num projeto que durará dois anos.

Nesse intervalo de tempo, outros 25 projetos-piloto independentes surgiram em outras regiões do país, como Oxford e Norfolk. Alguns já foram encerrados, outros, como o da Cornualha, se expandiram. Atualmente, são 60 profissionais por lá, que atuarão por cinco anos. O Reino Unido tem, atualmente, 150 agentes comunitários de saúde.

Esses agentes precisam ter uma forte ligação com a comunidade em que vão trabalhar e morar perto dela. Não é exigida nenhuma qualificação na área de saúde, apenas que o candidato goste de resolver problemas e seja discreto. Há um treinamento de cerca de um mês e depois supervisão toda semana.

Os resultados do trabalho seguem aparecendo, diz Junghans-Minton. "Sinto que conheço muito melhor a comunidade, a vida que as pessoas levam e o que elas têm." Por meio do trabalho, por exemplo, foi possível encontrar crianças atuando em funções de cuidado que deveriam ser executadas por adultos e até um caso de cárcere privado.

"Às vezes, as pessoas olham para sistemas como o NHS e dizem: ‘é aqui que queremos chegar'. Mas, na verdade, é um sistema muito caro e que não é particularmente eficaz. As pessoas chegam tarde, com doenças em estado avançado", acrescenta a médica.

Na parceria com a Fiocruz, estão previstos pelo menos quatro intercâmbios entre profissionais do Brasil e do Reino Unido, como a viagem realizada pelo ACS Bernardo Xavier, além de oficinas com pesquisadores.

O papel do ACS no SUS

Os agentes comunitários de saúde surgiram na década de 1990, como papel central na Estratégia Saúde da Família (ESF). Eles devem moram na região em que atuam há pelo menos dois anos e acompanham até 750 moradores de uma comunidade.

Eles são considerados um pilar fundamental da promoção e prevenção à saúde, sobretudo em regiões de difícil acesso e para pessoas em situação de vulnerabilidade. Sua função é realizar visitas domiciliares e atividades educativas, carregando o trunfo de ter a confiança da população atendida. Dessa forma, fazem a ponte delas com as unidades básicas de saúde.

Atualmente, o Brasil conta com 53.826 equipes de saúde da família distribuídas em todo país e 281.024 ACSs, segundo o Ministério da Saúde. São 34.788 ACSs na região Norte, 105.098 na região Nordeste, 19.494 na região Centro-Oeste, 89.335 na região Sudeste e 32.309 na região Sul.

Para o coordenador do ResiliSUS, Alessandro Jatobá, os ACS são a expressão de como o SUS consegue ser um serviço resiliente, ou seja, que consegue garantir as funções essenciais da saúde pública mesmo diante das adversidades.

"Não adianta você ter um sistema de saúde com enorme capacidade institucional, num país super rico, se você tem barreiras de acesso. E a Estratégia de Saúde da Família [no Brasil] é muito bem sucedida em gerar conhecimento sobre o território, para desenhar o cuidado e facilitar o acesso, principalmente das populações mais vulneráveis", afirma.

O ACS, descreve Jatobá, é o disseminador da capacidade adaptativa do SUS. É ele que vai permitir, por exemplo, que o serviço de saúde chegue a populações ribeirinhas, povos tradicionais e locais dominados pela violência urbana.

Troca de experiências

Bernardo Xavier conheceu a função por meio da mãe, que atuou como ACS durante 12 anos no mesmo local onde ele trabalha atualmente, no bairro do Anil, no Rio de Janeiro. " [Trabalhar como ACS] Era um plano B que virou um plano A. Me chamou muito a atenção ver como essa estratégia faz diferença na vida das pessoas", conta.

Na clínica onde ele trabalha, há 54 agentes, que enfrentam desafios como a violência armada para chegar à população. "Atrapalha as nossas visitas, precisamos interromper as visitas quando tem operação policial no território. É o nosso maior desafio", diz. Xavier passou nove dias em Londres, em abril, acompanhando as visitas domiciliares, e contando para os profissionais britânicos como é a experiência no Rio de Janeiro.

Na Europa, os desafios do sistema de saúde passam pela ascensão do discurso de ódio contra imigrantes, o empobrecimento e envelhecimento da população, além do aumento dos eventos climáticos extremos.

Os médicos britânicos estão escrevendo um livro sobre esses desafios, onde contarão sobre a experiência de adotar o modelo dos ACSs brasileiros. "Há desafios técnicos, como encontrar financiamento, pois o NHS tem muitas fontes de financiamento diferentes. Culturalmente, também estamos apenas aprendendo a olhar para os países do Sul Global e aprender com eles", diz Harris.

Do lado brasileiro, tanto Jatobá quanto Xavier estão seguros de que o SUS tem muito a ensinar. "O SUS é a maior conquista que a gente tem enquanto população, apesar de todas as campanhas de sucateamento", diz Xavier. "O SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Quem diz que o SUS não funciona, está mal informado ou mal intencionado", complementa Jatobá.