Pouco antes de morrer, em 26 de março de 1827, Ludwig van Beethoven trabalhava no projeto que viria a suceder sua criação mais brilhante, a Nona Sinfonia. A monumental obra-prima em ré menor era revolucionária não apenas por sua sequência harmônica incomparável, mas pelo uso de um imenso coral de vozes, algo nunca feito antes em uma sinfonia. O que um revolucionário como Beethoven poderia fazer para se superar? Quais surpresas ele apresentaria em sua Décima Sinfonia?

Quartetos de corda de Beethoven foram inseridos no computador para que a máquina criasse melodias semelhantes

Foi a partir dessa especulação que musicólogos ligados à orquestra Nexus, na cidade de Lausanne, Suíça, realizaram o experimento “BeethovANN Symphony 10.1”. A partir das anotações do compositor encontradas em sua casa em Viena, na Áustria, onde vivia na época de sua morte, a equipe do programador e violoncelista Florian Colombo desenvolveu um software para completar a obra do gênio alemão por meio de inteligência artificial. O nome “BeethovANN” vem da sigla “Artificial Neural Network” (rede neural artificial), referência ao programa que “compôs” a obra.

ALGORITMO Partitura digital: algoritmo usou o conceito de “deep learning”, técnica que ensina computadores a pensar por conta própria reproduzindo as estruturas do cérebro humano (Crédito:Divulgação)

“É uma experiência emocionante para mim”, disse Colombo, aos sons do primeiro ensaio em que a orquestra Nexus tocou a obra, que tem duração de cinco minutos. “Há um toque de Beethoven, mas é realmente BeethovANN. Descobrimos algo novo.” Após o ensaio, o maestro Guillaume Berney fez alguns ajustes e a obra foi apresentada ao público pela primeira vez na quinta-feira 2. “Funciona”, afirmou o maestro. “Há algumas partes muito boas, outras nem tanto. Talvez falte a faísca da genialidade”, concluiu.

Colombo desenvolveu seu algoritmo usando o conceito de “deep learning”, técnica da inteligência artificial que ensina computadores a pensar por conta própria reproduzindo as estruturas do cérebro humano. Para gerar um arquivo digital em áudio que simulasse uma criação de Beethoven, por exemplo, o musicólogo alimentou o computador com as 16 peças para quarteto de cordas compostas pelo alemão, instruindo a máquina sobre o estilo de Beethoven em termos de melodia e estrutura harmônica.

Colombo, então, inseriu os dados sobre os fragmentos da “Décima Sinfonia”, encontrados nos rascunhos que Beethoven deixou ao morrer. A partir daí, solicitou que o computador preenchesse as lacunas com as melodias inspiradas nos quartetos de corda. O pesquisador, que levou quase uma década para desenvolver o sistema, afirma que usar um computador para tentar recriar algo iniciado por um dos maiores gênios da música não é uma interferência no processo criativo humano. “Não considero isso uma blasfêmia”, afirmou, já antecipando possíveis críticas dos mais tradicionalistas. “Ninguém está tentando substituir Beethoven.” Segundo ele, o próprio Beethoven teria aprovado o projeto. “Os compositores da época eram todos de vanguarda. Estavam sempre dispostos a adotar novos métodos.”

EM HARMONIA O maestro Guillaume Berney e Florian Colombo: “o que fizemos não é uma blasfêmia” (Crédito:Fabrice COFFRINI / AFP)

Criatividade digital

Não é de hoje que a inteligência artificial tem sido usada para simular criações humanas. Na própria música clássica, isso já havia sido feito antes: em 2019, a empresa chinesa Huawei patrocinou a criação de um software para concluir a “Sinfonia no. 8”, a famosa “Inacabada”, de Franz Schubert.

Na Coreia do Sul, outra empresa de telefonia usou o mesmo método para recriar a voz de Kim Kwang-seok, um cantor morto há 25 anos e muito popular no país. Para realizar o projeto, o computador foi alimentado com 700 canções de artistas diferentes, para compreender nuances de vozes, afinação e ritmo. Depois desse processo, foram inseridas 20 músicas cantadas por Kim Kwang-seok para que a máquina pudesse simular sua pronúncia e trejeitos vocais. O resultado foi positivo — e o projeto foi bem recebido pelos fãs do cantor.