A cantora e compositora carioca Maíra Freitas fala com emoção de sua visita a Angola em 2019. No país africano, ela deparou com um imenso baobá no qual, diz a história, os escravizados davam uma volta antes de entrar nos navios que os apartavam de sua pátria.

Maíra havia ido ao país para fazer um show. Antes mesmo de embarcar – ou voltar, como ela diz – para o continente africano pela primeira vez, já sentiu que algo mudaria definitivamente em sua vida. Carregava uma filha na barriga e a história de sua família no coração. Maíra é filha do cantor e compositor Martinho da Vila, considerado um rei em Angola.

Maíra desmontou, então, a banda que a acompanhava e chamou só mulheres. Assim nasceu o sexteto Jazz das Minas, grupo com o qual ela se apresenta no Festival Zunido, que estreia nesta quinta-feira, 9, no Sesc Pompeia. O festival tem como missão destacar a música preta em diferentes dimensões, sobretudo a urbana.

Além de Maíra, subirão ao palco o cantor e compositor Marcos Valle com a banda Azymuth, o grupo americano de hip hop The Last Poets, o DJ canadense Kid Coala acompanhado pela filha Lealani, o baterista Pupillo com o projeto Sonorado Apresenta Novelas e o beatmaker baiano Dr. Drumah em conexão com o rapper paulista Rodrigo Ogi.

“A música brasileira é fruto da diáspora. Ela só existe por conta da escravidão. É importante mostrar os artistas pretos que tocam essa música”, avisa Maíra. Ela conta que, certa vez, um amigo da periferia carioca lhe disse que jazz era “coisa de branco”.

“Quando só pessoas brancas começam a fazer a música preta, as pessoas se esquecem de onde tudo isso veio. Fica tudo meio confuso. Jazz é essencialmente preto. Não pode deixar de ser nosso. Temos que dar nomes aos bois”, diz.

FEMINISMO

Para ocupar todos os espaços possíveis, Maíra e Jazz das Minas brincam com os gêneros musicais. No repertório, além de músicas autorais que falam sobre questões ligadas ao feminino, há canções como o samba O Show tem que Continuar, composição de Luiz Carlos da Vila, Sombrinha e Arlindo Cruz, tocado em jazz. Ain’t Got No/ I Got Life, gravada por Nina Simone, leva arranjo de jongo.

“Se estamos falando de diáspora, vamos colocar todo mundo para ter uma conversa, né?”, conclama Maíra. O Jazz das Minas está em estúdio gravando seu álbum de estreia. A previsão de lançamento é ainda para este primeiro semestre.

O Festival Zunido, que tem shows até o dia 19 de março, ocorrerá na choperia do Sesc Pompeia, endereço que tem uma espaçosa pista na qual o público pode assistir aos shows de pé e dançar.

“Africanidade tem que ter terreiro para dançar. Terreiro em uma celebração africana é primordial”, adverte Rodrigo Brandão, curador do Zunido, sobre a escolha do local.

Brandão explica as conexões que estabeleceu entre os convidados para o festival, inclusive com a inclusão de um não preto no line-up, o músico Marcos Valle, com uma música que dialoga com o jazz e o funk soul.

“A música que faz diferença no mundo tem, de algum jeito, uma ligação à raiz africana, seja ela mais ou menos explícita”, diz o curador.

Ele cita, com maior evidência, o grupo americano The Last Poets e, Marcos Valle, com as influências mais indiretas. Aliás, os ingressos para o show do músico brasileiro com a banda Azymuth foram os primeiros a se esgotar.

DO HARLEM

Embora veteranos, The Last Poets vêm ao festival para sua primeira apresentação no Brasil. Nascido no Harlem, em Nova York, o grupo lançou seus primeiros álbuns no início dos anos 1970 e é considerado um dos pioneiros do hip hop. Brandão diz que o grupo influenciou artistas como The Notorious B.I.G., Public Enemy e De La Soul.

Poeta e professor, Abiodun Oyewole, um dos fundadores do The Last Poets, diz que o rap e o hip hop trouxeram uma forma de criação amigável para os jovens, o que ele define como uma espécie de reduto cultural. “Você pode falar muito e não se preocupar em cantar”, explica.

Abiodun diz não acompanhar a cena do hip hop brasileira, mas que não se surpreenderia se algum artista do Brasil já tivesse sampleado The Last Poets. “Como somos considerados a base do hip hop, muitas pessoas estão interessadas em nos ouvir. O que dissemos em muitos de nossos álbuns foi sampleado por rappers em todos os lugares. Montamos o palco para que a poesia com batida tivesse uma plataforma”, conclui.

Sobre o racismo, questão que afeta tanto a sociedade americana quanto a brasileira -, e que, inevitavelmente, é debatida nas canções do grupo – Abiodun diz que uma das funções primordiais de um artista é apontar males da sociedade e propor saídas para eles. “Poemas, canções, peças de teatro, filmes e danças devem destacar as coisas boas que compartilhamos uns com os outros e expor as coisas ruins que fazemos uns aos outros. Devemos apontar o problema e oferecer uma solução”, diz.

ANCESTRALIDADE

O músico ratifica uma percepção comentada por Maíra Freitas: a de que a ancestralidade cria laços inquebrantáveis, mesmo quando apagados pelo tempo ou sufocados pelas mãos de opressores. É possível reconhecê-la ao longe ou em suas variadas formas, sobretudo naquelas em que a abraça com respeito.

Uma prova: Abiodun conta que já esteve no Brasil e tem grande curiosidade a respeito do candomblé daqui. Ele também é amante da música de Tom Jobim. O maestro soberano, um dos pais da bossa nova, que é parente do jazz, também tem um toque de África em suas canções. Basta ouvir o recitativo que abre Samba do Avião ou os primeiros acordes de Águas de Março.

Festival Zunido

Sesc Pompeia

Rua Clélia, 93, Água Branca

5ª a sáb., 21h30, e dom., 18h30.

Ingressos: R$ 50 / R$ 25 / R$ 15.

Abre dia 9 e vai até 19/3.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.