Séries de TV turcas: entre crítica, negócios e propaganda

Séries de TV turcas: entre crítica, negócios e propaganda

"ProdutoresProduções feitas na Turquia foram exportadas para 170 países em 2023 e faturaram US$ 600 milhões. Descontente com liberalidade "islamofóbica", porém, governo Erdogan investe em suas próprias séries e telenovelas.Cerca de 60 mulheres, homens e crianças estão em frente à ampla escadaria de mármore do Pera Palace Hotel de Istambul, em estilo art nouveau, maravilhados com o elevador elétrico de quase 130 anos.

Um mensageiro do hotel pergunta se o grupo aguarda um passeio turístico e descobre que entre eles também há visitantes da Espanha. "Claro, desde que a série foi ao ar, recebemos visitantes do mundo todo." Muitos vão até lá para ver o magnífico local das filmagens e mergulhar na história.

A série à qual ele se refere se chama Meia-noite no Pera Palace Hotel e é baseada no livro de mesmo nome do autor americano Charles King. A produção está disponível mundialmente na plataforma de streaming Netflix desde março de 2022.

A história começa com a jornalista Esra, que visa escrever um artigo sobre o hotel inaugurado em 1895 e que hospedou personalidades internacionalmente famosas como Agatha Christie, Alfred Hitchcock, Greta Garbo e Ernest Hemingway.

O gerente do hotel, Ahmet, lhe revela um segredo: usando uma antiga chave de quarto do magnífico edifício, é possível viajar no tempo. A heroína então se transporta para o ano de 1919 e testemunha uma conspiração internacional: um comandante inglês planeja o assassinato do fundador do Estado turco, Mustafa Kemal Atatürk, que deve ser evitado a todo custo. Esse é o começo de uma aventura histórica na parte antiga e europeia de Istambul.

Vendidas para mais de 170 países

As séries e telenovelas turcas vêm ganhando audiência internacional desde os anos 2000. De acordo com a Associação Turca de Exportadores de Serviços, elas são vendidas anualmente para 170 países, gerando receitas de cerca de 600 milhões de dólares (R$ 3,5 bilhões) em 2023.

Estima-se que a marca de 1 bilhão de dólares deverá ser quebrada em 2024. De acordo com o ministro do Comércio turco, Ömer Bolat, a todo momento há 800 milhões de espectadores assistindo às séries turcas no mundo inteiro.

A história de sucesso começou com dramas como Prata, 1001 noites, Ezel, Século magnífico e Black Money Love. Os primeiros compradores foram o Cazaquistão e o Azerbaijão. Os países de língua árabe, a América Latina, nações dos Bálcãs, Rússia e Europa aderiram logo em seguida.

Segundo a empresa de análise de dados Parrot Analytics, que mede o desenvolvimento global da indústria do entretenimento, a demanda pelas séries turcas aumentou 184% entre 2000 e 2023.

Dramas românticos e criticas sociais

De acordo com a agência reguladora de mídia RTÜK, o público do país assiste a cerca de quatro horas de televisão por dia, principalmente as séries transmitidas no horário nobre. Mais de 70% de todas as famílias têm assinatura de serviços de streaming.

Por esse motivo, a oferta é grande: desde histórias de amor e comédias, até dramas históricos e sociais. Porém, quanto mais reveladoras e críticas as séries são, maior a probabilidade de serem submetidos ao escrutínio do Judiciário turco.

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, não esconde que não gosta das séries. Ele até descreveu essas produções como uma ameaça à segurança nacional, e as tachou de islamofóbicas, lembra o cientista político Hakki Tas, do Instituto Leibniz de Estudos Globais e Regionais de Hamburgo (Giga). E em geral, depois das críticas presidenciais vêm as punições.

A redação turca da DW já noticiou sobre a proibição de transmissão e a multa imposta à série Botões vermelhos, que aborda a profunda divisão entre grupos seculares e religiosos no país. Após um lançamento bem-sucedido. no fim de 2023, entidades pró-governo se indignaram, acusando a série de supostamente ferir os sentimentos religiosos. A emissora foi proibida de transmiti-la por duas semanas e recebeu uma multa equivalente a 275 mil euros.

Recentemente, as autoridades turcas também começaram a agir contra as agências de artistas. Dezenas delas estão sendo investigadas por supostas violações das leis antitruste.

Mais que um negócio

O governo turco, porém, tem uma relação ambivalente com as séries, usando-as também como plataformas de propaganda, por meio das quais pode influenciar a opinião pública e espalhar suas ideologias.

Enquanto as produções privadas estão cada vez mais sob pressão, o Estado investe maciçamente em suas próprias produções. A televisão estatal TRT encomenda inúmeras séries todos os anos que transmitem a história e os "valores da nação turca" de uma perspectiva islâmico-conservadora. Um exemplo é Ressurreição Ertugrul, que conta a vida do antigo líder tribal turco Ertugrul no século 13.

Além disso, as produções estatais são usadas para difamar críticos ou retratá-los de forma negativa. Como Metamorfose, uma produção da TRT na qual o empresário e ativista de direitos humanos Osman Kavala, preso há oito anos, é retratado como inimigo do Estado.

O que pretende o governo

De acordo com o cientista político Tas, o governo turco vem tentando impor à sociedade um modo de vida alinhado com o governista Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan. As séries que se desviam dessa norma devem ser silenciadas por meio de medidas judiciais, punições e pressão.

Nos últimos anos, as produções televisivas se tornaram uma espécie de válvula de escape para as críticas sociais, com mensagens ocultas em personagens e ações. Desde o sucesso da oposição nas eleições locais, há um ano, essa tendência se tornou ainda mais evidente, observa Tas.