Todas as quintas-feiras à noite, a parcela do País que não tem nada melhor para fazer na vida e que tem Omeprazol de 500 mg correndo nas veias, para tudo que está fazendo e começa a assistir àquele “freak show” tupiniquim apresentado por Jair Bolsonaro, o verdugo do Planalto. Quando criança, eu morava em Brasília, cidade em que nasci e residi até os 10 anos de idade, quando minha família se mudou para Belo Horizonte. Eu cresci, portanto, sob o período mais duro do regime militar. Meu vizinho de porta era o ministro Jarbas Passarinho, para que tenham ideia.

À época, a censura e o pau-de-arara comiam solto. Como garoto, jamais percebi qualquer anormalidade ou clima hostil. E me lembro de achar natural e até muito legal, programas de TV – oficiais ou não – enaltecendo o governo e pregando um patriotismo (hoje eu entendo) meio chulé. Havia um programa de muita audiência; muito importante mesmo. Talvez fosse o ‘Faustão’ daqueles anos. Chamava-se Amaral Netto, o Repórter. Transmitido pela Rede Globo, durante dez anos seguidos, mostrava o Brasil, de ponta a ponta, de maneira ufanista e descolada da realidade.

A TV Globo já era a mais importante, ainda que houvesse grandes concorrentes como a Record e a Tupi. E era também a mais adesista, a mais ‘chapa-branca’; praticamente o Ministério das Comunicações dos generais. Há muita coisa legal da época disponível no Youtube. Assistam.

JOVEM PAN

Com uma história grandiosa, e eu diria, heróica, a Rádio Panamericana – e desde 1960, Jovem Pan – fundada em 1942 e inaugurada em 1944 por dois dos maiores mestres da radionovela brasileira (sim, novela era no rádio; ainda não havia TV), Júlio Cosi e Oduvaldo Vianna, é hoje a maior do País.

Após ser vendida para o empresário Paulo Machado de Carvalho, que empresta o nome ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, em 1960, começou a se tornar o que é pelas mãos de Antônio Augusto Amaral de Carvalho, o A.A.A., ou Tuta, filho de Paulo Machado e pai do Tutinha, o ‘big boss’ da Pan.

Tuta e Tutinha, com suas genialidades natas, transformaram a rádio em um grupo gigantesco de comunicação. Em termos de importância, tecnologia, audiência, alcance e qualidade de produção, a Jovem Pan está para o rádio brasileiro como a Globo está para a televisão.

TRADIÇÃO E VANGUARDA

A emissora paulistana mistura, de forma impecável, tradição e vanguarda. Mantém no ar o Jornal da Manhã, o mais antigo e importante de São Paulo, como o genial programa Pânico, do não menos genial Emílio Surita. Ao mesmo tempo em que foi a precursora da transmissão ao vivo pela internet.

A cobertura esportiva continua impecável, como impecável continua a qualidade do seu time de jornalistas. Notem: não há que se confundir qualidade profissional com profissionalismo ou ideologia. Até porque, o que é qualidade para alguns se torna defeito para outros. Gosto é gosto, cambada!

Mas, como não há mal que para sempre dure nem alegria que nunca acabe, hoje, a Rádio Jovem Pan, outrora combativa e influente força de oposição aos governos de turno – todos os governos -, e entenda como “oposição” cobranças, críticas e a mais irrestrita postura pró-sociedade, tornou-se o Amaral Netto.

JOVEM PANO

Quem sou eu para especular as razões que levaram a direção da rádio a aderir de forma tão bisonha ao governo atual, ou melhor, ao bolsonarismo mais tosco e rábico. Dinheiro, audiência, ideologia, pluralidade, sensacionalismo? Eu repito: quem sou eu? Pois não faço a menor ideia do porquê.

Porém, como fã da rádio e de programas como o Pânico, o Três em Um, o Pingo nos Is, dentre outros, não tenho como não lamentar ouvir gente do quilate de um Guilherme Fiúza, ou de um elegantíssimo José Maria Trindade, maldizer vacinas, defender aglomerações e outras ‘bolsonarices’ mais.

É muito triste assistir ao Augusto Nunes esquecer tudo o que já falou sobre Lava Jato, Centrão, ditadura, etc. para agora “passar pano” para as mesmas nojeiras que antes criticava, apenas para defender o governo do ‘mito’. É simplesmente inacreditável o nível de sabujice de tanta gente bacana.

RETORNO AO INÍCIO

Iniciei este texto falando das ‘lives’ presidenciais, e em seguida passei ao Amaral Netto, não foi? Então. Como uma rádio da importância e da expressão de uma Jovem Pan sujeita-se a transmitir, ao vivo e em cores para todo o Brasil, aquele show de horrores protagonizado pelo amigão do Queiroz?

Como pode-se permitir às baixarias do pai do senador das rachadinhas e da mansão de seis milhões de reais – algo corriqueiro no entender da Jovem Pan de hoje – e seus convidados? Coisas como imitar gente sufocando por Covid, meu Deus!? Ou piadas racistas e homofóbicas?

Uma coisa é pluralidade e respeito ao contraditório, outra, bem diferente, é ouvir o histriônico Adrilles – a versão ignorante de Randolfe Rodrigues – dizer que 400 mil pessoas acompanharam a arruaça presidencial de domingo passado, no Rio de Janeiro, durante o rolê do coronavírus.

SUCESSO TOTAL

Ao que tudo indica, a audiência e o sucesso comercial da ‘Pano’ compensam, de alguma forma, o papel a que estão submetidos jornalistas de renome, que hoje precisam elogiar o reprovável, defender o indefensável, esconder o que não se pode ocultar. Mas qual é o custo cobrado pelo reflexo no espelho?

Os programas mais polêmicos da ‘Pano’ são justamente aqueles com os maiores índices de audiência, o que é compreensível diante da selvageria social do País. Ofensas baixíssimas cederam lugar para socos e pontapés, sempre estimulados pelo notório público. Seria uma reedição das arenas romanas?

Sucesso à parte, não deixam de ser condenáveis as mensagens diárias que a rádio passa aos milhões de ouvintes: ódio às esquerdas, intolerância política, mistificação e glorificação do presidente da República, negacionismo, mentira, falsidade e charlatanismo puro e simples associados à Covid-19.

TERMINO

Bolsonaro e o bolsonarismo, como qualquer político e força política, cedo ou tarde, e espero que muuuuito cedo, irão passar. Como irão passar Augusto Nunes, José Trindade, eu e você. A vida é finita e a absoluta maioria das ideias, também. Mas o nome e a história, ao menos para muitos, irão perpetuar.

Freddy Mercury, por exemplo, ainda vive todos os dias. Seu legado são suas músicas e sua história de superação. Como ele, Einstein, Newton, Darwin, Freud e tantos outros. Como serão lembrados, daqui a cinco ou dez anos, jornalistas que ajudaram o devoto da cloroquina em sua cruzada contra a vida?

Um dia, os filhos e os netos desse pessoal todo irão ler a respeito de coronavírus, de tratamento precoce, de ‘vachinas’, de jacarés, de mimimi, de “não sou coveiro”, de “e daí?”. E irão se perguntar: onde estavam nossos pais e avós? E a história irá lhes contar: ao lado dos homens maus, fazendo sucesso e fortuna às custas de mortos e doentes.