Considerado um dos mais habilidosos percussionistas da atualidade, Sergio Krakowski e seu trio convidaram uma das figuras mais ousadas da música brasileira, o brilhante Jards Macalé, para gravar um dos bambas do samba, o grande Zé Keti. Batizado de Mascarada, a obra ganha o mundo no dia 17 de janeiro, nos formatos digital e LP pela gravadora carioca Rocinante.

Zé Keti é o nome artístico do cantor e compositor carioca, José Flores de Jesus (1921 – 1999). O artista portelense, que começou a atuar na década de 1940 na ala dos compositores da escola de samba Portela, legou à música brasileira uma herança de mais de 200 composições e uma contribuição imensurável ao samba de raiz. Segundo Sergio Krakowski, a ideia de gravar um disco em sua homenagem surgiu a partir de experimentações em seus concertos: “Após nosso primeiro disco começamos a introduzir alguns sambas no nosso show, com a nossa visão, entrando no lugar do standard de jazz. E a partir disso foi um processo natural ir por esse caminho e explorar esse legado de Zé Keti”.

Jards Macalé como solista foi a escolha certa para o trio formado pelo guitarrista Todd Neufeld e pelo pianista Vítor Gonçalves. “Todd já era fã do Jards e deu a ideia de chamá-lo para cantar. A gente sentia que a exploração desses sambas não precisava ser apenas instrumental e a abordagem de Jards também é totalmente fora do tradicional – como a nossa”, explica o pandeirista.

Para Jards Macalé, o convite foi uma forma de relembrar o passado e reviver um símbolo da música brasileira. “Conheci o Zé Keti quando participei como violonista no Teatro Opinião, lá em 1960. Nos últimos anos, ninguém estava falando de Zé Keti e muitas pessoas não conhecem sua obra. Foi um convite maravilhoso do trio. Me chamaram para Nova York e eu fui!”, conta o artista.

O álbum Mascarada é resultado dessa mistura de experiências e vivências musicais. “Sinto que é Zé Keti com uma visão muito contemporânea, particular. Fizemos um disco muito bonito e, se puder usar essa palavra, ‘estranho’”, diverte-se Macalé.

Sergio Krakowski
Sergio Krakowski (Crédito:Divulgação)

“Gravar com Jards foi incrível, um aprendizado imenso e uma conexão verdadeira. Ele é fundador do que a gente acredita ser a Música Brasileira. Ter ele ao nosso lado é mais que uma honra, é uma reconexão com a experiência real de tocar o samba com os mestres, como uma ponte de energia sonora”, alega Sergio

“Tentamos nos conectar com algo realmente autêntico, sonoro, sem usar padrões superficiais do que é o samba, o jazz, o pandeiro, a guitarra, o piano ou de como deve soar a voz. O que queremos fazer é justamente abolir as expectativas e se jogar nessa investigação junto com o ouvinte”, completa.

O álbum é composto por sete faixas e a pintura reproduzida na capa é de autoria de Iberê Camargo. No repertório, entraram sambas clássicos do Zé Keti, como Opinião, Acender das Velas e Peço licença, além de “Improvisação” música inédita composta por Jards Macalé, Todd Neufeld e Sergio Krakowski

Mascarada foi gravado por Pepê Monnerat no Brooklyn Recording (NY) com direção artística e produção musical de Sergio Krakowski e Todd Neufeld.

Capa do LP Mascarada
A obra reproduzida na capa é de autoria de Iberê Camargo | sem título, 1976 | giz de cera e nanquim sobre papel (Crédito:Divulgação)

Faixas:

Lado A

1. Acender as Velas
(Zé Keti)

2. Opinião
(Zé Keti)

3. O Meu Pecado
(Zé Keti e Nelson Cavaquinho)

4. Improvisação
(Jards Macalé, Todd Neufeld e Sergio Krakowski)

Lado B

5. Mascarada
(Zé Keti e Elton Medeiros)

6. Prece de Esperança
(Zé Keti e citações de Walter Franco)

7. Peço Licença (Zé Keti

Jards Macalé

Desafinar o coro dos contentes parece ter sido tarefa que o carioca Jards Macalé assumiu para si. Quando pedimos a delicadeza, ele nos traz o ruído; quando o esperamos delirante, lá vem ele reverente, sempre como se dissesse: Eu só faço o que quero – aliás, título de sua biografia escrita por Fred Coelho.

Falar da trajetória de Jards é um passeio à memória da música e da cultura brasileira. Dos encontros com uma Maria Bethania recém-chegada da Bahia no Rio, as colaborações com Vinícius de Moraes, Nara Leão, Clara Nunes, a presença e participação na bossa nova, no tropicalismo, no pós-tropicalismo e na própria construção do Brasil democrático que conhecemos. Macalé tem sua biografia atravessada por tantos grandes nomes, como Caetano Veloso, Gal, Paulinho, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Frejat e Raul Seixas. Tem ainda uma forte representação também no cinema nacional, assinando trilhas sonoras de clássicos como Amuleto de Ogum  e Tenda dos Milagres de Nelson Pereira dos Santos, onde também participa como ator. Também colaborou na trilha de Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade. Foi ator em curtas e longas como Tira os Óculos e Recolhe o Homem, de André Sampaio e Big Jato de Cláudio Assis, além de ser o mote dos documentários Jards, um morcego na porta principal de Marcos Abujamra e João Pimentel e Jards de Eryk Rocha.

Depois de jogar xadrez na Sala Cecília Meirelles com John Cage, cantar com Jackson do Pandeiro, dividir projetos com Naná Vasconcelos (o álbum Let’s Play That), com Guinga, Zé Renato e Moacyr Luz (o show/DVD Dobrando a Carioca) e com vários artistas da cena recentíssima da canção brasileira (Juçara Marçal, Ava Rocha, Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Tim Bernardes e outros que surgem em Besta Fera, de 2019), Macalé ampliou ainda mais o rol de seus parceiros, dividindo pela primeira vez um trabalho com o lendário pianista e compositor João Donato: Síntese do Lance – lançado por nossa gravadora Rocinante em 2021. Esse “encontro de dois iconoclastas de estirpe”, segundo a definição do crítico Tárik de Souza, foi indicado ao Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira de 2022.

Seguindo o embalo Rocinante, uma das próximas empreitadas do artista será o disco “Mascarada”, em que Jards Macalé e o trio do pandeirista Sergio Krakowski oferecerão ao ouvinte interpretações “free líricas” de sambas de Zé Keti.

Sérgio Krakowski Trio

De um pandeirista carioca, talvez sejam esperadas coisas diferentes das que Sergio Krakowski faz.  Em suas mãos, o pandeiro, sem deixar de ser ele próprio, vira surdo, rum, tamborim e bateria eletrônica; trama polirritmias, borda contrapontos e interfere nas harmonias. Krakowski vem criando toda uma poética nucleada nesse tradicional instrumento. Uma poética: um discurso coeso e aberto a riscos que, ao longo dos anos, multiplica suas linhas de investigação e se desdobra nos mais diversos trabalhos.

Enquanto descobria batidas de funk com Sany Pitbull, dividiu cena fazendo choro com pegada contemporânea no Tira Poeira e rodou a Europa com workshops de percussão, Sérgio acumulou ainda os diplomas de Bacharel e Mestre em Matemática pela UFRJ e um doutorado em Computação Musical, onde se dedicou ao desenvolvimento de softwares que permitem que o pandeiro controle a projeção de vídeos, a geração de loops e efeitos, estabelecendo um diálogo em tempo real entre percussionista e máquina.

Entre a academia e a música, Sérgio experimentou misturar funk com choro, teve parcerias com nomes com Elza Soares, discos pela gravadora Biscoito Fino, apresentações nos Estados Unidos e Europa. Em 2016, lançou seu primeiro disco, A Fundação da Ilha, onde faz registro da sua imersão no universo das modulações métricas – fator estruturante da música dos batás da santeria cubana, aqui aplicado sobre repertório de lavra própria.

Mascarada é o segundo trabalho do trio, em ode aos sambas lendários de Zé Keti com interpretação sensível somada à voz e violão de Jards Macalé. O resultado? Uma fricção de estilos ásperos em torno de um repertório clássico.

Rocinante

A gravadora e fábrica de discos de vinil Rocinante foi criada em 2018, em Petrópolis. Trata-se do fruto do encontro de Sylvio Fraga com o conhecimento técnico do engenheiro de som Pepê Monnerat. A gravadora lança discos em vinil e em formato digital, com destaque para a canção e música instrumental brasileira na composição de seu catálogo.

O disco de vinil de qualidade produz um som especial – sem compressão – e é, portanto, um meio de reprodução importante para os objetivos da gravadora: expressar a singularidade e intenções estéticas de cada artista. “Nossa bússola é a comoção diante do que ouvimos. Atuamos principalmente nos campos da canção e da música instrumental brasileiras. Lançamos os discos em vinil, prensados na nossa própria fábrica com prensas modernas Newbilt, e também em formato digital”, comenta Sylvio Fraga, músico e sócio.

No romance “Dom Quixote” de Cervantes, Rocinante é o nome do cavalo do protagonista. Portanto, de acordo com os sócios, a gravadora é uma aventura que se assume quixotesca. No pool de artistas representados pela gravadora, o brilhantismo de Jards Macalé, Bernardo Ramos, Erika Ribeiro, João Donato, José Arimatéa, Marcelo Galter, Ilessi, Nelson Angelo, a obra de Letieres Leite + Quinteto / Orquestra Rumpilezz, Thiago Amud e o próprio Sylvio Fraga.