É preciso ser corajoso para escrever a sequência de um clássico da história do teatro – e ainda mais sendo também um exemplo pioneiro do realismo nos palcos. O jovem dramaturgo norte-americano Lucas Hnath, de 39 anos, ousou inventar um final alternativo para Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (1828-1906), e o resultado, Casa de Bonecas 2, que encerra temporada neste domingo, no Tucarena, surpreende como uma sequência de grande impacto, um aggiornamento lúcido das questões levantadas pelo norueguês no século 19.

Quase 140 anos após a estreia da peça, essas questões permanecem atuais – e isso explica o apelo da peça de Lucas Hnath, que, a exemplo de Ibsen, parece interessado em transpor para o teatro dramas reais, como o de Hillary e Clinton.

A bem da verdade, o próprio Ibsen já havia em sua época inventado a parte 2 de sua Casa de Bonecas, ao sucumbir às pressões de produtores alemães. Antes que um aventureiro o fizesse e temendo um epílogo improvisado, o próprio dramaturgo inventou um final alternativo para o drama de Nora Helmer, que abandona o marido e os três filhos para viver longe do claustrofóbico lar, partindo para a realização pessoal.

Nessa versão reescrita pelo próprio Ibsen para apaziguar a fúria censória, Nora não sai de casa. E passa o resto da vida infeliz.

Na sequência escrita por Lucas Hnath, ele adota o final clássico da mulher que abandona o lar, epílogo que tornou Ibsen o anjo anunciador do protofeminismo, ao fazer de sua Nora um exemplo de libertária em busca de autonomia.

Em Casa de Bonecas 2, ela volta ao lar 15 anos depois, mas não para ficar ao lado do marido e dos filhos. Nora, agora uma escritora de sucesso, volta para pedir o divórcio – vale lembrar que, na peça de Ibsen, ela falsifica a assinatura do pai para conseguir um empréstimo e ajudar o companheiro, um diretor de banco que vê sua carreira ameaçada por um escândalo.

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Desnecessário dizer que o pedido de divórcio não significa concessão de Nora aos valores burgueses – no século 19 (a peça foi escrita entre 1878 e 1879) a mulher era considerada incapaz, dependendo da autorização do marido para tudo. O divórcio é apenas pretexto para discutir a condição feminina.

Hnath usa um artifício para tornar atual o drama de Nora Helmer, uma mulher aprisionada no limbo temporal: seu texto conciso, flaubertiano, vai também ao mundo de Tom Stoppard e toma emprestado sua estratégia de trafegar entre o passado e o presente. É ao mesmo tempo uma virtude e um defeito.

Os palavrões ouvidos em cena transportam o espectador do século 19 – a ambientação e os figurinos são de época – para o século 21, mas esse anacronismo tem seu preço. O artifício metaficcional, de tratar o drama de Nora como real, e não como o de um personagem de Ibsen, funciona, embora seja um truque. Hnath recorre não só a Stoppard como a David Adjmi, este último seu modelo quase assumido de dramaturgia (em particular a Marie Antoinette de Adjmi, que reduziu a linguagem a cacos, usando ainda uma trilha pós-punk).

Assim como Casa de Bonecas 2 foi um veículo para Laurie Metcaff ganhar o Tony de melhor atriz em 2017, a montagem brasileira é um tour de force de Marília Gabriela em seu sétimo espetáculo como atriz.

Sua atuação valoriza o texto de Hnath, especialmente nos momentos de confronto com Torvald (Luciano Chirolli, numa interpretação sutil desse homem dividido entre a fragilidade e a truculência). Clarissa Kiste, como a filha mais nova de Nora, sugere uma persona distorcida da mãe, espelho que reflete ao contrário os seus valores.

Enquanto Nora descobre a própria voz como autora, a filha, ressentida pelo abandono da mãe, sufoca como um simulacro.

Também a atuação de Eliana Guttmann como a criada traduz o entendimento da construção disjuntiva de Hnath, em que tudo é seco como os galhos mortos do despojado cenário – uma metáfora visual apropriada graças à sensível direção de arte de Teodoro Cochrane e ao comando seguro da veterana diretora Regina Galdino.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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