O Ministro da Defesa Walter Braga Netto fez uma declaração espantosa na manhã de hoje, em uma audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.

Disse ele: “Existe interpretação equivocada que o sistema de saúde das Forças Armadas é público. Ele não é público, o militar paga. Ele desconta em folha e ainda paga 20% do tratamento e o dinheiro que vem de fora, do governo, é o fator de custo.”

A declaração foi feita em meio a uma discussão sobre o uso dos leitos de UTI dos hospitais militares, que não fazem parte do SUS, durante a pandemia. Questiona-se a gestão desses leitos, onde houver ociosidade: eles poderiam atender civis?

É aí que entra o raciocínio de Braga Netto. Se o sistema não é público, a tese de que os hospitais não precisam atender civis se fortalece.

O problema é que a fala do ministro confunde tudo, em vez de explicar.

As regras para o atendimento médico-hospitalar dos militares estão no Decreto 92.512/86.

Nele está estipulado, exatamente como disse Braga Netto, que os militares têm uma parcela de até 3,5% de seu soldo descontada todos os meses para abastecer o fundo de saúde de sua respectiva Força. Esse fundo, trocando em miúdos, é um plano de saúde. E como também afirmou o ministro, esse plano cobre até 80% das despesas médicas, o restante precisa ser pago pelo paciente.

Ok. Mas, além disso, temos o dinheiro que, segundo Braga Netto, “vem de fora, do governo”.

Ele menciona um tal fator de custo. Esse montante é calculado da seguinte forma: a cada 31 de dezembro, Exército, Marinha e Aeronáutica apuram o número de militares ativos e inativos, e também o número de seus dependentes. Esses números são depois multiplicados por valores-base estipulados por cada uma das forças. O resultado dessa multiplicação vai entrar no orçamento do ano seguinte.

Além disso, também entram no orçamento gastos com convênios médicos e “outros recursos que visem à assistência médico-hospitalar”.

O que tudo isso significa? Que o governo, ou melhor, o contribuinte, subvenciona sim o atendimento da “família militar”, que é formada pelos soldados e seus dependentes.

É pouco dinheiro? Não, é bastante. Há 6,8 bilhões de reais no Orçamento de 2021  destinados ao atendimento básico de saúde das Forças Armadas.

Tem mais? Tem. A manutenção dos hospitais militares e os investimentos feitos neles (as chamadas despesas correntes e de capital) compõem uma conta à parte. Só para o Hospital das Forças Armadas, que fica em Brasília, foram destinados 244 milhões de reais nesse ano.

Assim, quando Braga Netto diz que o sistema de saúde das Forças Armadas não é público, ele está escondendo bilhões de reais de impostos do contribuinte que bancam os equipamentos e subsidiam o atendimento de seus camaradas. A única coisa que provém do soldo é o equivalente a um plano de saúde.

É público, sim. Totalmente público, no que diz respeito aos equipamentos de saúde.

Dadas essas premissas, seria justo, em princípio, que os hospitais militares compartilhassem leitos com o SUS numa situação de crise como a que se vive atualmente. Deixar leitos ociosos reservados para oficiais e seus familiares enquanto gente agoniza não faz sentido.

Digo em princípio porque talvez haja especificidades a serem levadas em conta. Mas não vale sugerir que não existem recursos públicos em abundância na saúde militar, como fez Braga Netto.

E também não basta dizer, como fez o Comandante do Exército, Edson Pujol, na mesma audiência pública de hoje: “Como vou justificar um militar, um dependente, um pensionista nosso chegar no hospital militar e não ter um leito?”

A justificativa é simples. Não estamos em guerra contra um inimigo externo, estamos em guerra contra um vírus que não diferencia entre civis e militares. E todos os pacientes são cidadãos brasileiros.

Essa discussão mostra como o corporativismo está arraigado na mentalidade dos militares. Quando se trata de privilégios, eles defendem com vigor suas fronteiras.

Haveria uma circunstância em que eu toparia pagar de bom grado impostos que subvencionam a saúde das Forças Armadas em tempos de paz: se eles deixassem de se considerar tutores da nossa democracia.

Fiquem com os hospitais. Da saúde da democracia cuidamos nós. Vale?