Apesar da oposição do governo federal e de um ou outro grupo radical, o passaporte da vacina tem prosperado e ganhado força em várias cidades brasileiras onde existe estratégia de controle para conter a contaminação pelo coronavírus. Pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que a maioria dos prefeitos tende a concordar com a iniciativa, exigindo sua apresentação em locais públicos que favoreçam aglomeração, como supermercados, shoppings, estádios de futebol, exposições, convenções e cinemas. O entendimento geral é que a adoção do documento se tornou prioritária na atual fase da pandemia, quando a quantidade de vacinados ainda se mostra insuficiente para reduzir a transmissão a níveis mínimos. Por isso, deve haver um reforço de segurança na circulação de pessoas. Questionamentos econômicos e judiciais à obrigatoriedade de apresentação do passaporte não têm frutificado e tampouco os esforços do Ministério da Saúde para boicotar sua implantação. A questão é simples: com ele, quem está cumprindo as etapas da imunização pode se movimentar sem restrição; os demais, especialmente que é contra a vacina, terão que esperar.

RIO DE JANEIRO – PROMOÇÃO O casal Gabriel Serveira e Ana Álvares aproveita uma promoção para clientes totalmente imunizados no restaurante Otto (Crédito:CHICO FERREIRA)

O passaporte pode ser a caderneta física de vacinação ou a carteira digital do ConnectSUS e, como regra geral, está sendo aceito só com a primeira dose, desde que não tenha passado o prazo para tomar a segunda. No Rio de Janeiro entrou em vigor no dia 15 de setembro e deve durar pelo menos até novembro, quando a Secretaria de Saúde espera que 90% dos adultos estejam completamente vacinados, levando à chamada imunidade coletiva. É uma situação, porém, ainda distante de ser alcançada e os números da pandemia mostram que qualquer relaxamento pode colocar muito a perder. Na quarta-feira, 22, o número de óbitos pelo coronavírus no Brasil voltou a crescer. Foram registradas 839 mortes e a média móvel diária subiu para 531, depois de duas semanas de queda. O total de mortos pela Covid-19 no País alcançou 592 mil pessoas. Em contrapartida, até agora, 147,1 milhões de brasileiros tomaram pelo menos a primeira dose da vacina (69,7% da população) e 82,2 milhões, a segunda dose (39%).

Em São Paulo, o documento também é indispensável desde 10 de setembro em qualquer ambiente que possa reunir mais de 500 pessoas e sua exigência deve durar enquanto todos não tomarem a segunda dose, inclusive os mais jovens. Segundo o secretário de Saúde do município, Edson Aparecido, essa forma de controle e acompanhamento epidemiológico tem como objetivo criar um ambiente de segurança para as próprias pessoas que estiverem participando dos eventos. “O comprovante vacinal é uma garantia de segurança para os frequentadores”, afirma. A capital paulista avança rápido na imunização, com a totalidade da população mais suscetível vacinada com a primeira dose, num total de 17 milhões de pessoas e mais de 70% com a segunda. Por conta disso, há uma retomada gradual de eventos de maior porte, mas, mesmo assim, jogos de futebol com público, por exemplo, que reúnem dezenas de milhares de pessoas, ainda não foram liberados. “Neste momento, a apresentação do comprovante de vacinação passa tranquilidade tanto aos organizadores quanto aos participantes”, diz Aparecido.

Passeio seguro

Quem quiser entrar na Bienal de São Paulo, por exemplo, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, e desfrutar de uma das melhores atrações da cidade neste início de primavera só com passaporte na mão e a vacinação em dia. Mas nenhum problema foi registrado até agora, com exceção de um homem de 84 anos que insistiu em participar da exposição no dia da abertura sem o comprovante e foi dissuadido. A imensa maioria das pessoas mostra o documento com alegria, sabendo que está agindo em prol do interesse coletivo. É o caso de Celso de Souza, 56, servidor público aposentado que buscava alguns momentos de diversão segunda-feira, 20, junto com suas noras, Ester e Gabriela. Todos apresentaram o comprovante para entrar na Bienal e diziam se sentir mais seguros com a medida. Em abril, Souza perdeu para a Covid-19 a esposa Rosimeire, 57, e o filho Otávio, 36. Ele também pegou Covid e por pouco se salvou. “Fiquei com 70% do pulmão comprometido”, lembra. “Precisamos tomar todos os cuidados possíveis para conter essa pandemia de uma vez.”

ESTADOS UNIDOS – PASSE LIVRE Em novembro, o país vai liberar a entrada de brasileiros imunizados, que poderão voltar à Broadway (Crédito:Charles Sykes)

No Rio, embora o passaporte não seja exigido em bares e restaurantes, uma forma divertida e saborosa de se estimular a adesão à vacinação foi criada pelo restaurante Otto, no bairro da Tijuca. Trata-se do “Vacinou, ganhou”, promoção em que o cliente que apresentar comprovante com duas doses ou a dose única, consome e recebe alguns mimos, como sobremesas e chopes. “Tivemos um almoço delicioso e seguro”, diz a psicopedagoga Marluci Lima, 71, que frequenta o lugar desde a inauguração, há 17 anos, e fez um brinde com chope servido especialmente pelo dono do restaurante, Ottmar Grunewald. Ao lado, o casal Gabriel Serveira e Ana Álvares, ambos imunizados, ele com a dose única da Janssen e ela com as duas da Coronavac, também aproveitavam a comida alemã do lugar. A exigência de comprovante chegou até a Ilha de Fernando de Noronha, onde, a partir do dia 10 de outubro, os visitantes precisarão apresentar o passaporte. Quem estiver imunizado com apenas uma dose deverá mostrar o exame RT-PCR.

As viagens internacionais começam a ser liberadas para brasileiros, mas sem comprovantes de vacinação e testes ninguém irá circular. A partir de novembro, essa será a condição para visitar os Estados Unidos, por exemplo. Vários países europeus têm adotado o passaporte para seus cidadãos e enfrentado protestos de grupos antivacina que o consideram uma limitação dos direitos individuais. Mesmo assim, os governos têm exigido que funcionários dos serviços de saúde e professores tomem a vacina inclusive para preservar seus empregos. Na França, que tornou a vacinação obrigatória, três mil profissionais de saúde foram suspensos do serviço. Os sindicatos questionam a medida e ameaçam deflagrar uma greve geral. Na Itália, o passaporte foi instituído nacionalmente e é exigido desde o início do mês para usuários de transportes coletivos, como trens, ônibus de longa distância, aviões e navios. Professores também são obrigados a portar o passe verde. Em Israel, país que mais avançou na vacinação, o documento é adotado desde fevereiro.

FRANÇA – CONFLITO A vacinação se tornou obrigatória e funcionários públicos que se opõem à medida estão sendo afastados dos serviços (Crédito:Divulgação)

Segundo a advogada Lenir Santos, especialista em direito sanitário e colaboradora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a exigência de apresentação do passaporte da vacina não agride o direito individual de quem quer que seja, especialmente de pessoas que rejeitam a imunização e podem se sentir impedidas de ir e vir. Há consenso de que, nesta altura, não se pode tolerar um contágio irresponsável por causa de uma reunião de muitas pessoas sem controle ou como o que atingiu o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que tem uma mentalidade antivacina e minimiza os efeitos das restrições em prol de questões de mercado. “O direito coletivo sempre está acima do individual”, afirma Lenir Santos. Ela explica que há outras situações em que a vacinação compulsória acontece sem causar qualquer alvoroço. “Há alguns programas sociais que são atrelados ao compromisso da vacinação”, afirma. O que se exige agora é o compromisso de todos para impedir que a pandemia recrudesça. Tomar a vacina envolve um pacto social de proteção mútua que não pode ser rompido.