Apacificação nacional não está interligada a eventual anistia a Jair Bolsonaro, seja ela legal ou informal. A mensagem, transmitida nas entrelinhas no discurso de posse de Lula, ganhou fôlego entre aliados do Palácio do Planalto e figurou como um “mantra” da militância nas cerimônias oficiais da gestão petista. No outro extremo da política, reacendeu entre bolsonaristas o temor com o empenho do governo para impulsionar investigações que miram o capitão e até mesmo abrir novos flancos de apuração — acuados, os radicais falam, aliás, em uma “caça às bruxas”. A responsabilização de Bolsonaro, que viajou aos Estados Unidos sem data para voltar, e de seus asseclas pelos crimes cometidos, no entanto, trata-se de uma questão de justiça.

O temor de bolsonaristas não é injustificado. O ex-presidente responde a cerca de 30 processos. Mas, no pronunciamento de domingo, 1º, Lula mencionou justamente o calcanhar de Aquiles do capitão: a omissão na pandemia e os ataques à democracia. Bolsonaro terá chumbo grosso pela frente. Desde a transição, a equipe técnica do presidente está debruçada sobre os atos do antecessor do petista na crise da Covid-19. Revisa, por exemplo, os registros sobre a negociação de vacinas e quer revogar o sigilo sobre a compra de insumos pelo Exército para a fabricação de remédios comprovadamente ineficazes contra a doença, como a cloroquina.

Os senadores que integraram a CPI da Covid também se movimentam. Humberto Costa (PT-SE) defende que a oposição revisite o material obtido para buscar novas provas e robustecer o indiciamento de Bolsonaro, feito pela comissão, em decorrência da prática de nove crimes, do charlatanismo à malversação de dinheiro público e falsidade ideológica. Os processos estão na ProcuradoriaGeral da República e tramitam sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal. “Em fevereiro, analisaremos a melhor forma de proceder. Entendemos que alguns casos que Augusto Aras arquivou, por exemplo, podem ser reabertos na Justiça comum com o que encontrarmos de novo, já que Bolsonaro perdeu o foro”, pontua. Renan Calheiros (MDB-AL) faz coro. “Ao perder a blindagem do pizzaiolo Augusto Aras, a tendência e esperança é que os responsáveis pelo colapso na Saúde sejam punidos exemplarmente”.

A movimentação bolsonarista por uma ruptura democrática também passará por um pente-fino. Logo ao assumir o cargo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que todos os inquéritos relacionados aos pedidos por uma intervenção militar passarão pelas mãos da Polícia Federal. A tendência é a de que o material destrinche o passo a passo de bolsonaristas e fortaleça os processos supervisionados por Alexandre de Moraes com a mira no financiamento e na insuflação dos atos antidemocráticos.

O PL teme que as ações resultem na condenação e inelegibilidade de Bolsonaro. Admite-se, no partido, que o clima de convulsão social no país decorreu das mentiras espalhadas pelo capitão sobre a Justiça Eleitoral e as urnas eletrônicas. A tensão cresceu depois de Moraes autorizar a quebra dos sigilos telefônico e telemático de oito bolsonaristas, com uma brecha para a replicação das medidas a todos os que tiveram contato com os primeiros alvos. A investida, pontuam correligionários do ex-presidente, pode levar a uma devassa nas contas dele em aplicativos de mensagem, por exemplo, o que poderia comprovar seu vínculo com as manifestações.

AMIGUINHOS O maquiador de Michelle, Agustin Fernandez, pendurado no ombro de Bolsonaro, ladeado por um casal de brasileiros donos de pizzaria em Orlando (EUA) (Crédito:Divulgação)

Anistia não

O partido encara o slogan “anistia não”, entoado por petistas, como uma sinalização de que Lula pode indicar à sucessão de Aras e Lindôra Araújo, em setembro, nomes “hostis” a Bolsonaro, pouco propensos a fazer vista grossa sobre os crimes do ex-presidente. A avaliação está ancorada, sobretudo, no trecho em que o petista assegurou que “as responsabilidades hão de ser apuradas e não devem ficar impunes”. “Quem errou responderá por seus erros, com amplo direito de defesa, dentro do devido processo legal”, completou. A concessão de uma graça presidencial por Lula a Bolsonaro, perdoando o cumprimento da pena caso o capitão seja condenado, jamais passou pela cabeça de lideranças de extrema direita. Os mesmos dirigentes consideram improvável a anistia propriamente dita por uma lei ordinária no Congresso Nacional, por entenderem que não há maioria ou clima no Parlamento para a medida.

Petistas lembram a história para justificar a postura firme. Argumentam que a Lei da Anistia de 1979, usada para perdoar os crimes de agentes de Estado durante a ditadura, deixou impune agentes que cometeram ilícitos contra a humanidade, torturas, homicídios e sequestros, diferente do que ocorreu em países vizinhos, como a Argentina. Acrescentam que ter a mesma posição condescendente com aqueles que pregam uma nova intervenção militar seria um incentivo ao crescimento do radicalismo. E reiteram a principal frase dita por Lula na posse: “Democracia para sempre”.