A comemoração cheia de gingado feita por Roger Milla a cada gol assinalado pela seleção de Camarões na Copa do Mundo da Itália, em 1990, ainda está viva na memória do torcedor que acompanha futebol há pouco mais de três décadas. Irreverência e ousadia ofensiva marcaram o futebol africano no cenário Mundial. Essa tendência, no entanto, vem se transformando com o passar dos anos. A Copa Africana de Nações, que será decidida entre Senegal e Egito, dos companheiros de Liverpool Mohamed Salah e Sadio Mané, dois craques, coloca novamente em evidência o futebol local e levanta algumas questões sobre essa mudança de cenário.

Craques com projeção internacional dão aos africanos a certeza de que o talento segue em alta. O paradoxo é que, mesmo tendo protagonistas brilhando na Europa, em quase todos os times, o panorama aponta outro caminho. O termômetro pode ser medido por suas participações em Copas do Mundo. A última vez que mereceram um registro nesse sentido foi em 2010, na África do Sul. Naquela edição, Gana ficou próxima de se credenciar à semifinal do torneio. A queda veio só nos pênaltis após empate de 1 a 1 com o Uruguai pelas quartas de final.

O Estadão foi atrás de quem viveu essa realidade de perto para entender a falta de protagonismo do futebol africano em épocas recentes mesmo tendo em campo jogadores de outro patamar. Pedro, atacante de 30 anos, é um andarilho do futebol e já atuou pela Ásia, Europa, Oriente Médio e também passou pelo futebol angolano. Natural do bairro do Jaçanã, zona norte da capital paulista, ele deu os primeiros passos nas categorias de base do São Paulo. Em Cotia, fez parte da geração de nomes como o volante Casemiro, o atacante Lucas Moura e o meia Oscar, todos com passagens pela seleção brasileira.

No final de 2019, atuando na Coreia do Sul, surgiu a oportunidade de jogar em Angola. Lá, em meio ao período da pandemia, faturou o título da Liga Angolana com a camisa do Sagrada Esperança.

Fã dos jogadores africanos, Pedro coloca na conta do êxodo de atletas o motivo pela falta de protagonismo do futebol africano no cenário global. “Os destaques saem muito cedo daqui e vão jogar na Europa. É o caminho natural. Muitos buscam a naturalização em países onde o futebol é mais desenvolvido. O resultado é que as seleções africanas vão ficando mais enfraquecidas”, disse à reportagem, por telefone. Egito e Senegal tentam reescrever essa história. A força dos jogadores africanos e sua alegria em campo fazem falta na Copa. Em 2010, Carlos Alberto Parreira comandou a seleção da África do Sul, mas o time não foi muito longe, apesar de ser o anfitrião.

No período de um ano em que esteve em Angola, o atleta apontou a África do Sul, o Egito, a Argélia e a Tunísia como os centros mais adiantados do continente. “Esses países têm campeonatos mais fortes e formam bons times. Acho que falta também um intercâmbio maior de treinadores. Novas ideias e estratégias ajudam na evolução. Nesse tempo que estive lá, vi que os jogadores têm habilidade, são rápidos, mas não possuem muito conceito tático. Uma semelhança com os brasileiros é que eles veem no futebol a chance de mudar de vida. Na África, de uma forma geral, a população não tem muitas oportunidades”, afirmou Pedro que atualmente defende o NAVY, da Tailândia.

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RIVALDO DEIXOU LEGADO – Além do Sagrada Esperança, outros dois times dão as cartas no futebol de Angola segundo Pedro: o Primeiro de Agosto e o Petro de Luanda. No entanto, o atraso de salários é comum mesmo entre as equipes de ponta. Consagrado com a camisa da seleção brasileira e também por sua trajetória internacional, Rivaldo emprestou o seu futebol ao país local no ano de 2012. Apesar da curta passagem, Pedro conta que o ex-meia impressionou não só a torcida, mas também o elenco.

“O Rivaldo jogou no Kabuscorp e alguns dos meus ex-companheiros atuaram com ele. Mesmo com a idade avançada, ele fazia a diferença. Isso tanto nos jogos quanto nos treinos de dois toques e coletivos. Na bola parada ele era incrível. A equipe que o contratou tinha muito dinheiro e influência por causa de seu presidente. Mesmo assim, fiquei sabendo que ficaram devendo altas quantias ao Rivaldo e acabaram sendo processados junto à Fifa.”

Mesmo sem ter ainda definição sobre os países africanos que vão estar presentes nesta edição da Copa do Mundo, a expectativa é de que algum atleta do continente se destaque na competição. O favorito, para Pedro, é Salah. Ele se baseia no grande momento do atleta e, se o Egito conseguir a vaga para o torneio, acredita no poder de decisão do craque do Liverpool. “É um jogador com potencial fantástico e deve ganhar o prêmio de melhor atleta do mundo nos próximos anos. Gosto muito do Mané também.”

GLOBALIZAÇÃO E FIM DO DNA OFENSIVO – Para Rafael Oliveira, comentarista de futebol internacional na Band, essa transformação tem elementos extracampo que merecem atenção. “Hoje o mundo é globalizado e o fluxo de informação é muito grande. As pessoas têm acesso a todo tipo de campeonato, de como estão os clubes, quem são os destaques. Isso não existia antes e acaba com a condição de surpresa. A cada final de semana podemos ver esses jogadores em ação.”

Outro ponto analisado por Rafael é o fato de que o DNA dos africanos, que ganhou o mundo tendo como selo de qualidade a ousadia e “irresponsabilidade” tática, não é mais o mesmo. “Em um primeiro estágio, podemos falar que houve uma europeização do futebol com um padrão mais tático, um estilo mais amarrado. Mas se você observar as equipes de alto nível da Europa, os jogos não são arrastados, pelo contrário. Hoje, o futebol africano corre muito pouco risco. Eles não pressionam, tem um ritmo mais lento, atuam em bloco fechado e fazem muita ligação direta.”

COPAS QUE EXALTARAM O ESPÍRITO AFRICANO – O Mundial de 2010, realizado na África do Sul, pode ter sido o último suspiro de um país do continente mãe. Naquela edição, Gana caiu nas quartas ao perder nos pênaltis a vaga para o Uruguai. Em edições anteriores, porém, os africanos também aprontaram com europeus e sul-americanos. Em 2002, por exemplo, Senegal venceu a França, então campeã do mundo, logo na estreia. Depois, superou a Suécia nas oitavas e só parou na fase seguinte ao cair diante da Turquia.

Oito anos antes, nos Estados Unidos, os nigerianos se classificaram em primeiro na fase de grupos em uma chave que tinha Argentina, Bulgária e Grécia. Nas oitavas, a Nigéria vencia a Itália por 1 a 0 e comemorava a vaga para a etapa seguinte quando sofreu o empate no fim do segundo tempo. A eliminação veio com pênalti marcado por Baggio (autor também do primeiro gol italiano) que decretou o revés de 2 a 1 na prorrogação.

O feito mais emblemático, porém, aconteceu na edição do Mundial de 1990, na Itália. A seleção de Camarões impactou os torcedores e a imprensa logo na estreia com o 1 a 0 sobre a Argentina. Nas oitavas do torneio, o duelo foi com a Colômbia de Higuita Valderrama e Rincón. Nesse jogo, com vitória de 2 a 1, Roger Milla marcou duas vezes, anotou o seu quarto tento no Mundial e eternizou a dancinha à beira do campo como marca das suas comemorações.

O fim do sonho viria em um duelo dramático. Após virar o jogo contra os ingleses (perdia por 1 a 0), os Leões Indomáveis permitiram a reação dos europeus e deixaram a Copa do Mundo da Itália nas quartas de final com o placar adverso de 3 a 2.


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