As mudanças que a pandemia do novo coronavírus trouxe ao futebol brasileiro tornaram o trabalho de treinadores ainda mais intenso, mas mantiveram a “dança das cadeiras” que assola o futebol nacional. Passadas 12 rodadas, a edição de 2020 da Série A já soma oito mudanças de comando devido a maus resultados.

– Os técnicos estão dentro de um modelo arcaico do futebol brasileiro. Quando a pandemia proibiu o público e posteriormente paralisou o futebol, os clubes não se transformaram digitalmente para, assim como em outras empresas, criarem um novo ambiente de negócios, com ações de marketing e de engajamento da torcida para toda a semana. Há exclusivamente uma preocupação com quarta e domingo. A visibilidade de patrocínio é pensada exclusivamente para jogos – afirmou, ao LANCE!, Amir Somoggi, consultor de marketing e gestão esportiva e sócio da Sports Value, que destacou:

– Enquanto na Europa e em diversos continentes o futebol parou devido à escalada da Covid-19, os clubes brasileiros pressionaram pelo o retorno do futebol e hoje até cogitam a volta de público. O futebol brasileiro só olha para o trabalho de quarta e domingo. Não é à toa que a contratação do treinador é projetada apenas para o desempenho nos jogos e só – completou.

PANDEMIA RENDE MOMENTOS ESTAPAFÚRDIOS

Ney Franco

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Ney Franco foi o primeiro treinador demitido do Goiás na competição (Foto: Divulgação/Goiás)

A maneira como a Covid-19 indiretamente causou a primeira troca de técnicos no Goiás. Após ter 15 jogadores infectados (entre eles, nove titulares) a ponto da sua estreia contra o São Paulo ser adiada, o Esmeraldino lidou com um início ruim . O empate contra o Palmeiras e as derrotas para Athletico-PR e Fortaleza levaram à demissão de Ney Franco na quarta rodada.

A cúpula esmeraldina agiu rápido e anunciou Thiago Larghi. Entretanto, o novo comandante durou sete partidas e logo foi substituído por Enderson Moreira.

Outra situação curiosa aconteceu no Athletico-PR. Após a equipe amargar quatro derrotas consecutivas na competição, Dorival Junior teve sua demissão confirmada.

No entanto, o técnico não estava na beira de campo nos três primeiros tropeços do Furacão na competição. Contaminado pela Covid-19, Dorival havia sido substituído pelo auxiliar Lucas Silvestre. Sua volta à beira do gramado também foi o jogo de despedida da equipe.

– Foi esperado. Na verdade, a equipe oscilava muito. Depois do jogo com o Fluminense (revés por 1 a 0, cinco dias antes de Dorival Junior ser demitido), o (dirigente) Paulo André foi para a coletiva e insinuou que o clube entendia que a comissão não estava usando os princípios de modelo de jogo do Athletico-PR. Causou uma discussão se o momento foi acertado – afirmou o repórter Daniel Piva, da Rádio Transamérica.

CARTAS MARCADAS?

Jorginho anunciado pelo Coritiba

Jorginho voltou ao Coritiba oito meses após ter conduzido a equipe ao acesso à elite (Foto: Divulgação/Coritiba)

As decisões dos dirigentes neste início de Campeonato Brasileiro sinalizam a opção por um “tiro certo”. Primeiro treinador demitido nesta edição (na quarta rodada), Eduardo Barroca saiu de cena no Coritiba para dar lugar a Jorginho. O ex-lateral retornou ao Couto Pereira oito meses depois de ter conduzido a equipe à elite do futebol nacional.

Já no Goiás, Enderson Moreira iniciará sua terceira passagem. O comandante retorna ao Serra Dourada credenciado por três títulos estaduais e pela conquista da Série B de 2012.


Outro clube também se mostra empenhado em ter respostas rápidas. Em sua saga no Brasileirão com “nova roupagem”, o Red Bull Bragantino também recorreu a um nome conhecido para substituir Felipe Conceição (que foi demitido na sexta rodada).

Com um acesso à elite paulista pelo Red Bull Brasil, Maurício Barbieri agora está à frente do Massa Bruta, fruto da fusão entre os clubes. E em sua chegada a Bragança Paulista, está calejado também por passagens por Flamengo, América-MG e Goiás.

Consultor de gestão e finanças do esporte, Cesar Grafietti detalhou o que pesa para os dirigentes brasileiros optarem por “cartas marcadas” com vivência nos clubes.

– Essa questão de ir e voltar com treinador acontece muito pela falta de opção. Além disto, são treinadores tarimbados e também escolhas óbvias em um mercado ruim – e, em seguida, traçou o cenário no qual os técnicos estão inseridos:

– No Brasil, o que acontece que é um treinador é um novato que deu certo por um motivo qualquer e acaba saindo para uma oportunidade melhor sem estrutura, preparo efetivo. Quantos treinadores têm uma Licença Pro, como acontece na Uefa? O futebol brasileiro se atropela demais. Treinadores são lançados antes da hora e sem preparo. No fim das contas, o time acaba se enrolando e recorre a um comandante que passou duas, três vezes pelo clube, que já conhece a história e o vestiário conversa. Esta figura é um porto-seguro para o dirigente. O integrante da diretoria fala “trouxe um treinador conhecido”. Só que ele não é um dirigente que estudou, pensou, analisou uma possibilidade de treinador e se organizou para contratá-lo – completou.

Tiago Nunes aceitou a missão de comandar o Corinthians nesta temporada, após ter visto sua carreira deslanchar em 2019 com as conquistas da Copa do Brasil e da Copa Sul-Americana no Athletico-PR. Entretanto, o revés para o Palmeiras na nona rodada trouxe um ponto final à sua trajetória no Parque São Jorge.

Com isto, Dyego Coelho entra para a lista de interinos “testados” em busca de um lugar ao sol enquanto o Timão não acerta com outro profissional. O outro é Eduardo Barros, que ganha uma nova oportunidade no Athletico-PR enquanto a diretoria não encontra um nome ideal.

Os “rodados” também voltaram a ganhar espaço neste início de Campeonato Brasileiro. Após demitir Daniel Paulista na quinta rodada, o Sport depositou as fichas em Jair Ventura para saltar na classificação do Brasileirão.

Credenciado pelo trabalho na Seleção Brasileira e por passagens no Corinthians, Grêmio e Cruzeiro, Mano Menezes desembarcou no Bahia com a missão de substituir Roger Machado, que caiu na sétima rodada.

ALTA ROTATIVIDADE À VISTA?

Athletico-PR x Santos - Sampaoli

Sampaoli foi um dos poucos remanescentes do Brasileirão de 2019 (Foto: Ivan Storti/Santos FC)


A “dança das cadeiras” traz índices preocupantes no futebol brasileiro. No ano de 2019, houve 24 mudanças de comando e apenas três equipes foram até o fim com o mesmo técnico: o Grêmio de Renato Gaúcho, o Santos de Jorge Sampaoli e o Bahia de Roger Machado.

Até o Flamengo foi campeão com mudança de comando: Jorge Jesus assumiu a equipe na parada da Copa América, logo depois de Abel Braga se demitir. O fato incomum havia acontecido anteriormente nos pontos corridos em outras duas edições. Em 2009, o próprio Rubro-Negro demitiu Cuca e tomou o rumo certo com a efetivação de Andrade.

No ano de 2018, o Palmeiras também mudou de comando e foi campeão: Roger Machado deu lugar a Luiz Felipe Scolari.

Na edição de 2019, o Cruzeiro “inflacionou” as mudanças de comando e não evitou seu rebaixamento: Mano Menezes, Rogério Ceni, Abel Braga e Adilson Batista ficaram à frente da equipe. Ceni ainda protagonizou uma situação sui generis. Primeiramente, deixou o Fortaleza para desembarcar na Toca da Raposa. Contudo, não resistiu às pressões internas e à falta de resultados e foi demitido cerca de dois meses depois, saindo no dia 26 de setembro. Três dias depois, sua volta ao Tricolor do Pici foi confirmada, em substituição a Zé Ricardo.

O ano de 2018 também já havia apontado um número alto de trocas de técnicos: 29, repetindo a temporada de 2016. O recorde continua a ser de 2015, com 32 idas e vindas. Em seguida, vem o ano de 2010, com 31 trocas.

Cesar Grafietti aponta o que culmina nos erros de planejamento do futebol nacional.

– Além de poucos treinadores brasileiros terem a mesma formação de europeus, dificilmente um dirigente fará a contratação do técnico sabendo o que esperar dele. No máximo, terá uma ideia do que espera dele. O clube ainda contrata errado porque a gestão é em geral amadora, tem gerentes que são meros contratadores… E aí você não tem um treinador que não sabe o que vai aplicar. Inicialmente, ele chega com uma ideia, mas a falta de resultados e a deficiência do elenco fazem com que ele mude no meio do caminho. O Brasil tem essa ideia do treinador ficar mudando o tempo inteiro, ter um “toque de gênio” para mudar no intervalo ou com uma ou duas mudanças, quando o resultado é só fruto do que foi aplicado durante os treinos na semana – e frisou:

– Em alguns momentos, técnicos com ideia ofensiva aos poucos têm de mudar para uma ideia defensiva. Não há identidade, aplicação de modelo de jogo. A necessidade do elenco faz com que ele mude. A pandemia não mudou nada, porque a cabeça do dirigente, da estrutura do futebol são muito amadoras nesse sentido. Não há grandes profissionais qualificados como tem na Europa, capazes de escolher um treinador com certo perfil tático na cabeça… – completou.

O CENÁRIO NA EUROPA

Lopetegui - Real Madrid

Lopetegui: passagem rápida no Real Madrid (Foto: Gabriel Bouys / AFP)

A inconstância não acontece da mesma forma no futebol europeu. O economista Cesar Grafietti aponta como é o planejamento no exterior.

– Quando um clube contrata, já projeta um padrão de jogo. Sabe o que esperar do técnico nos processos de treinamentos. A partida é a aplicação do processo que tem. O comandante se formou nos cursos da Uefa, fez Licença Pro, trabalhou de maneira aprofundada, começou desde a base, passou em times modestos… Chega à elite com experiência à elite. Neste cenário, há mudança de comando se a prática for muito diferente ou se o extracampo tiver um impacto no elenco – disse.

Analista esportivo da TVI, Rui Pedro Brás destacou que em Portugal o rodízio é incomum.

– Não há nada que se compare no Brasil, no Brasil é um disparate. Não faz sentido contratar treinadores e após dois ou três jogos contratar outro. Na Europa, também acontece às vezes demissões de técnicos na fase inicial. Há dois anos, o Sporting passou por mudanças, trocou oito, nove treinadores em dois anos. Foi no período no qual invadiram o CT do clube, o que levou à saída de Jorge Jesus. Há também as “chicotadas psicológicas”, expressão que usamos aqui para estas trocas. Isto aconteceu quando houve renegociação de direitos televisivos. Houve mais demissões de treinadores, pois houve mais facilidade de indenizações. Houve má gestão do dinheiro – disse.

Grafietti aponta que são raros os erros de planejamento no futebol europeu.

– No Real Madrid, o Julen Lopetégui não foi demitido rapidamente pelos resultados ruins (durou 14 partidas, com seis vitórias, dois empates e cinco derrotas em 2018). É porque aquilo que o dirigente contratou era diferente do que imaginava foi diferente do que o elenco e a diretoria estavam esperando. O Milan contratou o (Marco) Giampaolo, que foi muito bem na Sampdoria, mas tinha um perfil de jogo que não encaixou. O que apresentava no treinamento e nas partidas era diferente e o clube entendeu que errou na escolha. Aí o clube procurou um treinador “normalizador”, com padrão claro, definido, de acordo com o que o Milan pedia no momento e organizou o time. Já no Brasil, estamos muito atrasados de cultura de ter treinadores bem preparados. Faltam modelos de jogos interessantes, modernos. Os técnicos brasileiros vão ajustando conforme as partidas, conforme o elenco, adversários. A ideia de jogo tem de estar enraizada, isto é que faz a diferença. Os técnicos brasileiros mudam conforme o vento – declarou.

NOVAS DIRETRIZES? AINDA NÃO…

Rogerio Caboclo

Restrição de trocas no Brasileiro proposta pela CBF foi rechaçada pelos clubes (Divulgação)

A CBF propôs nos últimos anos restringir a uma troca de treinador por clube na Série A. Entretanto, a medida foi negada em 2019 e ignorada no início deste ano. Aos olhos de Grafietti, a atitude não chega a surpreender.

– Isso é uma muleta do dirigente. Muitas vezes o dirigente troca de treinador faltando dez rodadas, porque está correndo risco de cair ou com dificuldade de ir para a Libertadores. Aí contrata um treinador de emergência, consegue o objetivo e mantém para o início da temporada seguinte. Em geral, não é um planejamento certo. Começa com um impulso, mas no meio da outra temporada, o clube tem de correr atrás de um novo treinador, sem saber quem é, o que esperar dele – disse.

Ainda há muito a refletir.


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