A obra de Euclides da Cunha (1866-1909) inspira estudos eternos. Próximo homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que acontece em julho, o autor de Os Sertões apresenta uma radicalidade na literatura e cultura brasileiras. Sobre seu trabalho, debruçam-se diversos pesquisadores, como Francisco Foot Hardman, que coordena o volume Ensaios e Inéditos (Editora Unesp), organizada por Leopoldo Bernucci e Felipe Pereira Rissato. Trata-se do conjunto de 31 composições assinadas por Euclides, cuja primeira tem a data de 1883, quando ele tinha apenas 17 anos, e a última é de 1909, ano de sua morte. Algumas crônicas foram publicadas em O Estado de S. Paulo, jornal para o qual o escritor colaborou regularmente.

Além do ineditismo em livro de alguns textos – e de outros serem pouquíssimos conhecidos -, a missão desse trabalho é a de mostrar como o talento de Euclides não se limitava ao Sertões, certamente uma das mais importantes obras da literatura brasileira. “Julgo tão importante como outro livro de Euclides, À Margem da História (1909), publicado postumamente e que a editora Unesp deverá lançar uma edição crítica e na qual será possível constatar sua radicalidade no âmbito da literatura e da cultura brasileira”, observa Hardman.

Entre as 31 composições, há desde fragmentos (punhado de frases sobre determinado assunto ao qual Euclides não pode ou não quis retomar) até anotações e manuscritos que resultariam em textos acabados como Contrastes e Confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907) e o já lembrado À Margem da História. Uma das questões mais recorrentes na obra de Euclides é a relação entre civilização e barbárie – assim, quando de sua viagem ao Alto Purus, no Acre, região fronteiriça com o Peru, em 1905, época de auge da economia extrativista da borracha, o escritor observou o trabalho semiescravo a que eram submetidos os seringueiros, além da brutalidade reservada aos índios.

À época, Euclides foi designado para liderar a comitiva mista brasileiro-peruana de reconhecimento da região. E, além de cumprir com os objetivos técnicos da missão (como mapeamento da área), ele coletou dados para uma análise histórica e social do extremo oeste da Amazônia. Sobre Ensaios e Inéditos, Hardman respondeu as seguintes questões.

Quais detalhes sobre o trabalho de Euclides da Cunha são apresentados nessa seleção que não é possível ver (ao menos, tão nitidamente) em Os Sertões?

Haveria vários aspectos a considerar. Mas, de forma sintética, penso na dimensão do interesse internacionalista amplo que o autor revela, em vários dos textos desse volume, não só no âmbito das questões da América Latina, mas de toda a geopolítica mundial, muito além do apregoado “nacionalismo rígido” que muitas leituras apressadas lhe conferem. Sua resenha original, por exemplo, sobre o romance Quatrevingt-treize, de Victor Hugo (1874), manuscrita num caderno de cálculo infinitesimal na Escola Militar, por volta de 1885, converte-se em libelo, em profissão de fé romântica nos ideais da Revolução Francesa, que já nos tinha chamado a atenção quando compilávamos sua poesia de juventude. Seu interesse pelas regiões interiores e sua articulação com os polos hegemônicos da política, da economia ou da cultura faz dele um dos primeiros intelectuais brasileiros a questionar as estruturas autoritárias mais arcaicas herdadas da colônia e do império e, sobretudo, a exclusão de muitos de seus espaços e comunidades humanas da “história oficial”. Quanto ao estilo, vale lembrar que aqui nós temos textos curtos, numa forma talvez a mais recorrente em Euclides (Os Sertões constituindo, a rigor, uma exceção). Seu vínculo forte com o jornalismo, seja como cronista ou articulista de fundo, é algo que necessitaria ser ainda melhor estudado.

Pelos textos, nota-se Euclides em constante ato de autocrítica sobre assuntos diversos. É possível dizer, então, que esses escritos de alguma forma até ajudam a ressaltar aspectos biográficos?

Bem, para Euclides certamente valeria a máxima borgiana: no fundo, publicamos livros para parar de revê-los… Ele era particularmente obsessivo com as revisões intermináveis que fazia, mesmo quando o livro já estava no prelo. Sem dúvida, tanto nesse volume quanto em sua Poesia Reunida emerge uma dimensão autobiográfica inegável, às vezes mais explícita, ou implícita. Certamente, isso vai despontar com força nos volumes seguintes da série que estamos preparando, relativos à sua correspondência ativa e passiva, em dois tomos remissivos. O trabalho quase todo inédito de recuperação de sua correspondência passiva devemos em grande parte à pesquisa primária incansável de Rissato.

Interessante também é forma crítica como Euclides via as tentativas de uma restauração da Monarquia e também apontava as rachaduras da República, não?

Euclides foi um abolicionista e republicano de primeiríssima hora, engajado como jovem cadete radical, inclusive com simpatias declaradas pelo socialismo reformista mais afim aos inícios da social-democracia europeia, o que, digamos, se no Brasil de hoje representa uma posição avançadíssima, imagina, então, no final do século 19. Mas, como já apontaram com argúcia, entre outros, nossos saudosos amigos euclidianistas Frederic Amory e Roberto Ventura, ao contrário do que leituras banais sugeriram, Euclides, já em 1894, descontente com os rumos autoritário-militares da República, entra em rota de colisão com a carreira militar, é transferido abruptamente para Campanha, em Minas Gerais, e, em 1895, inicia seus trabalhos como engenheiro de obras públicas no Estado de São Paulo, desengajado do Exército, como tenente da reserva. E como dissidente discreto, mas efetivo, podemos acrescentar.

Euclides será o escritor homenageado da Flip desse ano. Um dos motivos é o fato de Os Sertões ser considerado um dos primeiros clássicos brasileiros de não ficção. Observando nossa atualidade, qual importância tem essa homenagem? E quão Os Sertões é atual nesse tempo?

Euclides é um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos. Nesse sentido, todas as homenagens serão sempre bem-vindas, necessárias e, esperemos, renovadas. Sua modernidade literária pode ser vista nos gêneros híbridos adotados, na temática social inovadora e na sua desconfiança visceral em relação ao beletrismo e ao bacharelismo de nossas elites. A atualidade de Os Sertões pode ser buscada de várias maneiras. Vou destacar o que me parece o mais importante. Quando setores que passaram a nos governar podem tornar mais vulneráveis nossos ecossistemas e os povos que lá habitam (indígenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses, entre outras comunidades), lembrar das “loucuras e crimes das nacionalidades”, com que Euclides conclui sua obra-prima, é lembrar que 20 mil sertanejos, nossos irmãos – como sempre reitera o escritor -, foram massacrados pelo Estado e pelo Exército de nossa jovem República. Isso deveria sempre ser relembrado, para que não se justifiquem outros crimes.