As mudanças climáticas impactam vários eventos no mundo inteiro. No Brasil, a ocorrência de secas extremas na região Norte do país e as enchentes e chuvas intensas no Sul demonstram os efeitos do El Niño, um fenômeno meteorológico que atinge o Oceano Pacífico Equatorial e que resulta em mudanças no tempo, mas também, as consequências do aquecimento global.

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O Rio Negro, na Bacia Amazônica, atingiu um recorde de diminuição nos níveis de água de acordo com dados do Porto de Manaus. Nesta sexta-feira, 20, as baixas registradas chegaram ao número de 13,19 metros. A última vez que um valor tão pequeno foi notificado ocorreu em 2010, momento em que se mostrou o índice de 13,63. Desde o início das medições, em 1902, não era contabilizada uma diminuição tão severa.

Os impactos da seca histórica foram tão absurdos que a cidade de São Gabriel da Cachoeira, no extremo oeste do Amazonas, chegou a realizar um racionamento de energia, que posteriormente foi revogado por demanda da Justiça do estado. A estiagem deixou comunidades isoladas e fez com que escolas fossem fechadas nas zonas rurais do município de Manaus. O governador Wilson Lima (União Brasil) chegou a afirmar que 500 mil pessoas devem ficar sem acesso à água e comida.

Em contrapartida, os três estados da região Sul do Brasil registram fortes chuvas e enchentes, com granizo e estimativas de ventos que podem chegar a velocidades de 100 km/h. A Oktoberfest de Blumenau, em Santa Catarina, chegou a ser suspensa na quinta-feira, 12, da semana passada, e a preocupação com alagamentos e deslizamentos de terra se tornou constante.

El Niño

Todos esses eventos estão associados à influência do El Niño, como explica o professor de meteorologia do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP, Ricardo de Camargo. “As águas aquecidas que normalmente se situam perto da Austrália e do Sudeste Asiático, em alguns anos, passam a ocupar o Oceano Pacífico próximo à costa da América do Sul. Nessas situações, a assinatura (do El Niño) fica bem evidenciada pelas condições de precipitação elevadas no sudeste do continente e deficientes no norte.”

A professora de geografia da USP Maria Elisa Siqueira da Silva complementa que a ocorrência do El Niño varia entre dois a sete anos, além de esclarecer que o calor das águas do Pacífico acaba por perturbar a circulação de nuvens na América do Sul. “Além desse fenômeno, hoje, temos um aquecimento anômalo do Oceano Atlântico, no norte do continente, o que causa mais seca.”

Sobre os efeitos provenientes do Atlântico, a especialista argumenta que o aumento ou diminuição das temperaturas do mar é cíclica, mas outros fatores acabam por intensificar esses impactos. “Associado a essas oscilações, temos o aquecimento global, que eleva o calor não só na atmosfera mas também nos oceanos.”

Ricardo de Camargo diz que é difícil afirmar se o que está acontecendo agora possui uma relação direta com as mudanças climáticas, já que há embasamento para dizer que o El Niño é um componente característico dos eventos que vêm ocorrendo. “O que não tem como responder exatamente é como esses fenômenos vão se comportar devido ao aquecimento global. Não sabemos se irão ser mais frequentes, intensos ou duradouros. Não possuímos essas informações”, explica o professor, ressaltando que os impactos dessas transformações nos fenômenos atmosféricos sempre chamaram a atenção dos pesquisadores.

Um dos esforços da comunidade científica é justamente antecipar a ocorrência de fenômenos como El Niño, como relata Ricardo de Camargo. “Por Abril e Maio, começaram a aparecer as primeiras evidências dessa manifestação climática […] Existem previsões para até o meio do ano que vem e, à medida que as observações são realizadas, elas vão sendo atualizadas.”

Maria Elisa Siqueira da Silva explica que esses fenômenos são cíclicos e eles irão impactar o clima com o tempo naturalmente. “O problema das mudanças climáticas é que teremos mais extremos observados, tanto de seca quanto de chuvas, o que dificulta a previsibilidade”. De acordo com a professora, os casos intensos estão aumentando cada vez mais.

Casos Extremos

Com o estado do Amazonas passando por o que consideram uma anomalia no período de secas, Ricardo de Camargo cita episódios anteriores de El Niño que acarretaram em uma situação semelhante, como os anos de 2005 e 2015. “Desde o início dos estudos das mudanças climáticas, o que sempre se disse é que esses fenômenos acontecem naturalmente para redistribuir a energia pelo planeta.”

No entanto, o professor esclarece que em um cenário em que a Terra armazena calor, esses eventos acabam por se tornar mais extremos. “Uma das preocupações é justamente que a ocorrência de extremos pode se potencializar e é o que temos observado […] Somos testemunhas oculares de que esses eventos extremos estão cada vez mais intensos.”

Relação com o desmatamento na Floresta Amazônica

A grande característica da Floresta Amazônica, segundo Maria Elena Siqueira da Silva, é a capacidade de transferir água do solo pelas raízes para a atmosfera. “É estimado que 50% da chuva que acontece na região é associada à própria transpiração da vegetação, a outra metade está relacionada às influências do oceano.”

A professora também cita o ponto de não retorno da Floresta Amazônica, quando devido ao desmatamento e outras razões, a vegetação não vai conseguir mais se regenerar por conta da baixa extração de água do solo, o que seria desastroso. “A região transporta muito calor e umidade, portanto o clima de todo o continente seria impactado com o desmatamento. Se você modifica o Amazonas, acaba por mudar o clima em outros lugares.”

O Ministério do Meio Ambiente recentemente enviou um reforço de 149 brigadistas para a região amazônica somados a dois helicópteros para tentar coibir os incêndios florestais que têm afetado a área e se intensificaram nos últimos anos. Até setembro de 2023, foram registrados 826 alertas de desmatamento no Amazonas, uma queda de 64,4% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados do Governo Federal.

Impactos do El Niño

É esperado que o El Niño tenha um impacto considerável no clima do Brasil até o inverno do ano que vem, como explica o professor Ricardo de Camargo. “Não existe uma conclusão de 100% das previsões, até porque elas usam métodos diferentes, alguns modelos sugerem que ele fique mais intenso, outros não […] Teremos uma influência bem grande ainda no final da primavera e no verão”, conclui o especialista, dizendo também que este fenômeno demora para se estabelecer, mas também leva tempo para decair.

O estado do Rio Grande do Sul comentou em comunicado enviado à IstoÉ que várias ações estão sendo realizadas para tentar coibir os efeitos de fortes chuvas e enchentes na população. O governo afirmou estar com operações de financiamento a regiões atingidas que chegam ao valor de R$ 1 bilhão, além do melhoramento de sistemas de alerta e monitoramento e a distribuição da quantia de R$ 2,5 mil para famílias desabrigadas e desalojadas.

O governo do Amazonas, do Paraná e de Santa Catarina não se manifestaram sobre o tema até o fechamento desta matéria.

 

**Estagiário sob supervisão