‘Se sentiu acuada como um animal; servidoras relatam rotina de abusos e lascívias de juiz

Em meio à austeridade de um e outro julgamento e consultas aos códigos da lei, o juiz federal Orlan Donato Rocha seguia uma rotina de assédio e importunação sexual, de acordo com cinco servidoras do fórum de Mossoró (RN) que o denunciaram ao Conselho Nacional de Justiça. Elas contam que eram ‘encurraladas’, ‘perseguidas’ pelo magistrado. O Estadão teve acesso a seus relatos.

A reportagem busca contato com a defesa de Orlan. O espaço está aberto. Perante o CNJ, ele alegou ter cometido um ‘procedimento incorreto’.

Nesta terça, 9, por unanimidade, o Conselho decretou a aposentadoria compulsória de Orlan. Na prática, a sanção o afasta de vez da toga, mas o contempla com vencimentos proporcionais ao tempo de carreira, como prevê a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), em vigor desde os tempos de exceção, em 1979.

As cinco servidoras que depuseram contra o juiz – quatro terceirizadas, entre copeiras e telefonistas, e uma efetiva – relataram ‘com riqueza de detalhes’, segundo o CNJ, atrevimentos e desplantes do juiz.

Por um longo período de quase uma década, entre 2014 e 2022, Orlan teria exibido uma performance extra autos que provocou medo e constrangimentos em sua Vara. Agora, um grupo de mulheres decidiu tornar público as repetidas inconveniências do doutor.

A identidade delas permanece sob severo sigilo como medida de proteção. Nos autos do CNJ, são identificadas como ‘Vítima’, de 1 a 5.

Zíper da calça

Uma copeira, ‘Vítima 1’, narrou um episódio em que o magistrado ‘fez insinuações, observou seu corpo de forma lasciva, subiu o zíper da calça e caminhou em sua direção’. A situação, segundo a vítima, ocorreu quando ela entrou na sala de Orlan para lhe entregar um copo de água, a pedido de Sua Excelência.

Cerca de 40 a 50 minutos depois da primeira investida, o juiz ligou para a copa e pediu dessa vez uma xícara de café. Quando a funcionária entrou com a bandeja, Orlan estava em pé atrás do birô. Ele fechou a porta, sem trancar.

“Quando eu encostei na mesa para deixar a bandeja, ele veio para detrás de mim, então eu já me afastei e vim para o outro lado da outra mesa”, disse ‘Vítima 1’.

‘Ficou olhando o corpo dela todinho’

“Ele fez ‘perai, deixa eu colocar meus óculos para ver melhor'”, segue o depoimento, em transcrição nos autos do CNJ.

“Ficou olhando o corpo dela todinho. Ela entendeu que foi uma insinuação, com a intenção de ver ela. Ele só falou isso, ela imediatamente saiu da sala, ele veio para a porta e ficou olhando ela saindo de costas até ele sair no corredor, quando ela chegou na porta do fim do corredor, ele disse ‘pronto, agora traga um copo d’água para mim’. Ela foi para lá tremendo, e S. viu e disse ‘eu já sabia que isso ia acontecer, que já tinha acontecido outras vezes lá, mas você tem que ir porque é sua função, mas você deixa a porta aberta’; que ela ficasse na dela e encerrasse o assunto. Ela foi até lá com o copo d’água; quando chegou lá ele estava atrás da porta fechando o zíper e disse: ‘não sabia que você vinha agora…estava chegando’, mas ele que pediu a água, então como não sabia? Ele fechou a porta, ela colocou a água em cima da mesa e ele veio para trás dela de novo, ela imediatamente saiu da sala e foi para a copa. Ele não chegou a tocar a depoente. Ela saiu toda tremendo e S. viu. Começou a chorar na copa dizendo que queria ir embora. Não visualizou nenhuma parte íntima dele.”

Encurralada

Outra copeira, ‘Vítima 2’, disse que o juiz telefonava insistentemente para a cozinha e que, em uma das vezes em que entrou no gabinete, acabou encurralada contra a parede e perseguida pela sala. Segundo seu depoimento, o magistrado estava com o cinto e o botão da calça abertos.

“Ela começou a achar estranho a quantidade de ligações e parou de atender. Na última vez a outra copeira atendeu, e a depoente falou que não queria ir na sala dele, sem dizer o porquê. Na quarta vez, ela foi e ele falou para fechar a porta”.

“Dessa última vez em que foi, ele não estava nem na frente nem atrás da mesa, mas atrás da porta”, relatou a mulher.

“Ele fechou a porta, veio em direção dela, ele não falou nada, ela percebeu que ele estava com o cinto aberto e o botão da calça também, ele vinha se aproximando como quem fosse encurralar ela na parede, e ela se esquivando dele”, descreveu.

“Se sentiu acuada, como um animal, um bicho”.

Orlan “não a tocou, só a perseguia”.

“Ela rodou a sala toda tentando se esquivar; ele não falou nada, nem fez gestos, só se deslocava se jogando para cima dela. Durou questão de minutos. Teve vontade de gritar mas não conseguiu, ficou em pânico e não sabe explicar como saiu da sala. Saiu da copa para pegar suas coisas e ir embora. Só pensava em ir embora.”

No banheiro com Sua Excelência

No testemunho da ‘Vítima 3’ – que afirmou nunca ter relatado as lascívias de Orlan a nenhum superior – a funcionária contou que, sempre que via o magistrado no corredor, procurava ‘sair do atendimento e ir para a Secretaria (da Vara)’.

Até que um dia ela o viu se aproximando pelo corredor que dava acesso à sala de audiência e deixou o espaço de atendimento às pressas para se esconder. A servidora afirma que, em vez de seguir para a Secretaria, que ficava à direita, correu para o lado esquerdo, onde havia um banheiro unissex, porque ‘estava apavorada com o que estava acontecendo’ na Vara de Sua Excelência.

Ficou escondida no banheiro ‘por um bom tempo até ele passar’.

“Quando abriu a porta do toalete, Orlan estava ali, de pé, com o braço levantado, impedindo sua passagem. O espaço tinha luz normal. Não percebeu se ele depois entrou no banheiro, porque já saiu chorando. Mas não era como alguém que estava esperando para usar o banheiro. Ele não usava aquele. Quem usava eram funcionários, terceirizados, estagiários.”

“Passou por baixo do braço do magistrado, saiu quase correndo, chorando, e foi para a guarita, contou o ocorrido à mãe e disse que não aguentava mais, que queria pedir demissão”.

‘Os dedos ficaram lá na minha perna’

A secretária efetiva da Vara em que Orlan era titular no fórum de Mossoró afirma que, durante uma audiência, o magistrado tocou ‘sutilmente’ suas pernas.

“Inicialmente, quando eu entrei, já escutava nas entrelinhas alguma coisa sobre ele, que ele já tinha dado em cima de outras mulheres, que tivesse cuidado. Eu ia atuar como assistente de audiências, o que já me deixou apreensiva. Eu estava sempre em estado de alerta, com receio de que acontecesse alguma coisa, mas ao mesmo tempo eu tinha que me dedicar ao meu serviço, fazer o meu trabalho”, relatou a ‘Vítima 4’.

“Uma única vez também durante uma audiência, um toque na minha perna. Era uma questão de uma orientação que ele ia me dar, alguma coisa que ele precisou chegar perto e falar somente para mim, e no momento ele tocou com as pontas dos dedos na minha perna e enquanto ele estava falando, os dedos ficaram lá na minha perna. Quando ele terminou a orientação, afastou a cadeira e a audiência prosseguiu. Não lembra se estava de saia ou de calça”, detalhou a secretária.

“Nessa data eu já estava bem habituada com a rotina de audiência, já tinha um certo tempo. Eu me senti desconfortável também achei algo desnecessário tocar e, enquanto estava falando comigo, permanecer tocando no mesmo lugar. Eram as pontas dos dedos, um toque leve, mas que permaneceu enquanto estava falando comigo.”

Questionada sobre a intenção do gesto, ela afirmou. “De acordo com minha percepção, pareceu intencional. Não era algo comum de se fazer. Foi a única vez.”

‘Me pediu um abraço’

‘Vítima 5’ relata o pedido de um abraço do magistrado, que a funcionária descreveu como “comportamento inconveniente”.

“Um dia eu estava no atendimento, na salinha de atendimento, bem pequenininha, e ele chegou do nada, muito silencioso, e começou a conversar e me pediu um abraço. Eu fiquei sem reação, mas ele me abraçou. Qual o contexto para lhe pedir esse abraço? Perguntou se eu estava gostando, o que era que eu fazia lá, e do nada pediu um abraço”, conta a funcionária.

“Foi algo inusitado. Foi rápido o abraço. Ninguém veio falar comigo. Não deu em nada. Eu temia muito que meu marido ficasse sabendo, e que acontecesse alguma coisa.”

“Eu achei inconveniente porque a gente não tinha nenhum vínculo de amizade, a gente não vivia conversando. Depois desse episódio não chegou mais perto outra vez, não houve proposta com esse abraço. Foi um abraço rápido. Todo mundo ficou assustado e tinha medo, tanto que quando Orlan não estava lá a gente ficava super à vontade, mas quando ele estava era aquela tensão. O jeito que ele olha para a pessoa é diferente dos outros.”

‘Padrão reiterado de conduta’

Ao analisar o teor dos depoimentos, o Conselho Nacional de Justiça demonstrou perplexidade ante a conduta atribuída ao magistrado Orlan Donato Rocha.

“Os depoimentos constantes dos autos revelam a prática de condutas graves por parte do magistrado, consistentes em perseguições, investidas de cunho sexual, um episódio de toque indevido, ainda que sutil e de intenção duvidosa, bem como insinuações constrangedoras”, destacou em seu voto o conselheiro Ulisses Rabaneda, relator da ação que culminou no decreto de aposentadoria compulsória de Orlan – contemplado com vencimentos proporcionais ao topo de carreira, como prevê a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), em vigor desde o regime de exceção, em 1979.

“Tais atos provocaram nas vítimas sentimentos de medo, constrangimento e insegurança, levando algumas a solicitarem transferência de setor e, em certos casos, a manifestarem o desejo de se desligar do ambiente de trabalho”, segue Ulisses.

“As declarações prestadas pelas vítimas – às quais se atribui especial valor, conforme entendimento consolidado – são harmônicas entre si, revelam um padrão reiterado de conduta por parte do magistrado e encontram respaldo, inclusive, nos testemunhos de juízes que atuaram como Diretores do Foro na mesma Subseção Judiciária”, assinala o relator.

Para ele, ‘a conduta do magistrado, caracterizada por investidas de cunho sexual, explícitas ou insinuadas, atingiu colaboradoras lotadas na unidade e se deu em contexto de reiteração, com comprovada audácia e desprezo pelas normas institucionais’.

“Os depoimentos colhidos evidenciam a gravidade das condutas”, observa Ulisses Rabaneda.

“Em diversos episódios, as vítimas relataram terem sido encurraladas em espaços fechados e perseguidas dentro do próprio gabinete, sendo levadas, em algumas ocasiões, a se esconder em banheiros ou solicitar mudança de setor como forma de evitar o assédio. Em um dos casos, o ambiente de trabalho tornou-se tão insustentável que uma das servidoras chegou a cogitar a própria exoneração do cargo, em razão do clima de intimidação instaurado”, pontua Ulisses no âmbito de Revisão Disciplinar que derrubou sanção de censura imposta anteriormente a Orlan pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF5-Recife).

Em razões finais no processo do CNJ, o juiz federal alegou que ‘apenas os fatos relacionados à servidora vítima 4’, ocorridos após a edição da Resolução CNJ 351/2020 podem ser considerados para fins disciplinares, ‘sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, por inexistir, à época dos demais fatos, norma que qualificasse o assédio como infração disciplinar’.