O prodígio Leandro Vieira, de 34 anos, está envolvido com o universo do carnaval desde os 19. Conhece o barracão de escola de samba como ninguém. Trabalhou como figurinista, aderecista e assistente direto de carnavalesco. “Foi a minha escola, pois não existe faculdade que forme um carnavalesco”, diz. Vieira sempre se entendeu um artista. No processo criativo de seu trabalho, ele presa por unir a criação a uma ideia. Há cinco anos, Leandro Vieira chegou à Estação Primeira de Mangueira (agremiação carnavalesca de bandeira pesada, supercampeã, que forneceu ao Brasil alguns dos maiores nomes da nossa música, Cartola, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Alcione e Leci Brandão) para assumir a função mais importante de uma escola de samba. Mesmo considerado inexperiente, deu à Verde-Rosa o título de campeã depois de quatorze anos, homenageando a diva Maria Betânia. Este ano, seu enredo, “Historia pra Ninar Gente Grande”, apresenta a ideia de que, na história oficial do Brasil, faltou exaltar pessoas e grupos populares, como os índios Cariris, os quilombolas e Marielle Franco. “A história oficial constrói, como narrativa, o discurso dos vencedores. A minha comunidade está do lado dos vencidos”.

Você estreou na Mangueira em 2016 e, no mesmo ano, foi campeão do Carnaval carioca com o enredo sobre Maria Bethânia. Como foi isso?

Esse carnaval foi magnífico. Foi meu primeiro desfile pela Mangueira. Comecei totalmente desconhecido, desacreditado. Cheguei envolto em uma aura muito ruim, como se a falta de experiência, como se a falta de um nome fosse levar o trabalho da Mangueira ao fracasso. Por isso, foi um Carnaval emblemático. Fui muito questionado.

Questionado por quem?

Pela diretoria, pela comunidade. Pensavam que uma pessoa de 29 anos não podia comandar o projeto artístico de uma escola desse tamanho. O fato é que peguei a Mangueira em 9º lugar, no ano anterior, e a tornei campeã. A escola encerou um jejum de 14 anos.

Há sempre muita polêmica envolvendo o financiamento das escolas de samba. Há acusações de que algumas recebem dinheiro ilícito e que outras vendem seus enredos. Qual sua opinião sobre isso?

A proporção que o Carnaval tomou faz com que se precise de muito investimento. Trata-se de uma festa gigantesca, muito cara. Mas é preciso lembrar que ela também gera muita receita. O Carnaval traz muita grana para cidade. Porém, de alguma forma aspectos financeiros esvaziaram elementos culturais. É importante que essa feição seja retomada. O carnaval é uma atividade criativa, que leva à reflexão. Enredos patrocinados diminuem o conteúdo artístico e político. Se o Carnaval é arte, não pode estar a serviço do comercial. A arte não pode ser distorcida. Por isso é importante fazer uma revisão desse modelo. Em alguns aspectos, o dinheiro em excesso reduziu a importância do Carnaval, enquanto atividade cultural.

O patrocino faz com que as empresas interfiram tanto a ponto de alterar a letra do samba?

Exatamente.

Este ano há alguma empresa patrocinando a Mangueira?

Não. Faz cinco anos que a Mangueira não apresenta um Carnaval patrocinado. Desde que eu estou aqui. Os temas escolhidos por nós são estritamente culturais. É assim em qualquer outra agremiação. Se a escola estiver de calça arreada para a questão do capital, não tem jeito. Isso está diminuindo. Com o País numa crise financeira, como a que nós enfrentamos nos últimos anos, a força do capital vai diminuindo. Os patrocínios minguaram. Isso fez, inclusive, com que enredos políticos e críticos ressurgissem no cenário carnavalesco.

Então como vocês se financiam?

Reciclando materiais de anos anteriores. E também com a venda de ingresso para eventos, como ensaios gerais, tanto na quadra da Mangueira, quanto no Sambódromo. Também recebemos uma parte dos recursos da subvenção da prefeitura para o Carnaval.

Essa verba está diminuindo, certo?

Sim, diminuiu. Desde que o prefeito Marcelo Crivela assumiu. De um total de 2 milhões de reais, a subvenção passou para 1 milhão, e agora apenas 500 mil reais.

Qual é a alegação?

Ele adota um discurso de quem tem dificuldade de entender o Carnaval como uma atividade cultural e turística importante. Se tem a ver com uma questão religiosa, não sei. A maneira como ele organiza a narrativa, para justificar a falta de apoio aos desfiles, mostra que ele é uma pessoa com uma dificuldade muito grande em entender a importância e o papel do carnaval como uma atividade cultural, artística e turística. Essa relevância é um fato que ele não pode negar.

Por que não há mais desfiles pirotécnicos, ao estilo do carnavelsco Paulo Barros?

Esse estilo é uma característica de um determinado carnavalesco. Mas não determina se o que está sendo apresentado é bom ou ruim. É apenas uma forma de desfile. O Carnaval se consagrou como uma manifestação artística graças a uma série de carnavalescos que ao longo dos anos se desdobraram e buscaram estéticas diferentes. Limitar o espetáculo ao nome de Joãozinho Trinta e ao de Paulo Barros é esquecer gente como Fernando Pinto, Rosa Magalhães, Renato Lage, Arlindo Rodrigues, entre outros que contribuíram decisivamente para a formatação visual do Carnaval, quiça até maiores que as dos dois. Mas é inegável que ambos assumiram destaque midiático. É importante entender a diferença, o que está na mídia e na avenida.

Os blocos de rua tiram o interesse do sambódromo?

É uma opção. Não sei se diminui o interesse pelo Carnaval de avenida, mas o grande barato é ter as múltiplas opções para brincar.

A abordagem de temas históricos sempre existiu no Carnaval ou esse desejo de revisar fatos do passado, com forte apelo político, é uma tendência recente?

Não acho que seja uma novidade. Foi algo que aconteceu muito nos anos 80. Durante o regime militar, algumas escolas de samba adotaram essa prática de contestação. Naquele período, a Caprichosos de Pilares ficou consagrada como uma escola politizada. Esse fenômeno é cíclico. Fernando Pamplona, do Salgueiro, fez muito isso. Com o enredo que, nos anos 1960, exaltou a negritude, ele estava fazendo política.

Você se espelha nele para fazer arte engajada?

Sim, claro.

O enredo da Mangueira exalta nomes específicos da cultura, da história e da política do Brasil, como os índios Cariris, os quilombolas e Cartola. Por quê?

Eu sou carnavalesco de uma comunidade pobre e majoritariamente negra. Tenho que apresentar algo com representatividade. Uma comunidade pobre e negra como a da Mangueira tem que reconhecer o orgulho por personagens populares. Eles não são mostrados pela historia oficial, vamos dizer assim, que constrói a narrativa, o discurso dos vencedores. Aí, a minha comunidade está do lado dos vencidos. São herdeiros da derrota dos índios, dos negros. Mas é importante dizer que essa gente lutou, que resistiu. Temos que falar para as crianças da Mangueira sobre a importância da representatividade, para que elas possam construir seus próprios ídolos. Para que possam dizer que negros, pobres e favelados, moradores de comunidades podem e devem ser sinônimo de patriotismo.

O educador Darcy Ribeiro dizia que “odiaria estar no lugar dos que venceram”.

Exatamente isso. Sou muito alinhado a esse pensamento do Darcy Ribeiro. O carnavalesco é isso. Ele tem que organizar o que é a verdade dessa comunidade.

A menção à vereadora Marielle Franco certamente causará grande impacto na avenida.

O enredo da Mangueira, em linhas gerais, fala da importância da representatividade. Quem escolheu quem seria símbolo de representatividade, escolheu que negro e o pobre não deveriam ser lembrados. Que eles não iriam ocupar páginas em livros de historia. Isso é muito simbólico. Então, cantamos Dandara, Luísa Mahin, os índios Cariris. Marielle é uma personalidade importante. Mostra aonde o povo da favela pode chegar. Marielle era uma representante da favela, nascida e criada na Maré, camelô até os 18 anos de idade. O povo da favela pode ir para a universidade, pode fazer mestrado, pode se eleger vereador. Existem heróis que não estão nos livros. A história oficial nos colocou na condição de “ninados”. Por isso o enredo da Mangueira se chama “História para Ninar Gente Grande”. Fomos ensinados a esperar que alguém venha fazer historia em nosso lugar. Alguém para nos conceder Abolição, a Independência, a República.

A letra do samba da Mangueira deste ano não é sisudo?

Está na boca do povo, que entende que o enredo canta a sua história. Uma escola de samba que canta e exalta o morro e a favela, num momento em que esses locais são apontados como um mal da sociedade. Como se ali fosse lugar de bandidos. Em vez disso, a favela que a Mangueira canta é a que projeta Carolina de Jesus, Cartola e Marielle Franco.

Como você se tornou carnavalesco?

Eu sou formado pela escola de Belas Artes, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sou carioca da gema. Nunca passou pela minha cabeça ser carnavalesco. Isso aconteceu por um acaso. Eu queria ser um artista. Sempre tive vocação para isso, mas eu achava que ia fazer arte institucional, que iria expor em galerias. Não consegui me inserir nesse mercado. O meio artístico é muito fechado, ainda mais quando se tem vinte e poucos anos. Entrei na faculdade com 17 anos. Aos 19 já estava envolvido com Carnaval. Antes de ir para a Mangueira, atuei durante 10 anos nos bastidores. Trabalhei na Portela, na Grande Rio e na Imperatriz Leopoldinense, na Caprichosos de Pilares. No começo, foi péssimo. Comecei a trabalhar na bancada de adereços. Achei muito ruim essa experiência.

Você trabalhou com Joãosinho Trinta. Como era?

João foi o primeiro carnavalesco com quem eu tive contato, mas durou muito pouco, apenas um ano. Não era um trabalho de criação, mas de reprodução de ideias prontas. O ambiente também não era bom. João era uma figura grosseira no trato com profissionais do barracão.

Como você define a profissão?

O artista carnavalesco não é aquele que quer apresentar belo ou o horror. Ele tem que levantar um pensamento. Não é o bonito que interessa, é o pensar. É preciso ter uma ideia a serviço do Carnaval.