Aos 80 anos, o cineasta e ator Woody Allen completa cinco décadas de angústias existenciais, total liberdade criativa e muita disciplina sentado na cadeira de diretor. “Crio hábitos. Leio sempre o ‘The New York Times’, toco clarineta todas as tardes e preciso escrever diariamente”, diz o nova-iorquino Woody, incansável na tarefa de rodar um filme por ano (“até o dia em que não conseguir mais ficar em pé”). Consagrado pelo humor cáustico e os diálogos rápidos, ele é um dos poucos que não dá satisfação aos estúdios e põe na tela a história que quiser – graças a orçamentos modestos. Woody prefere até hoje retratar tipos sem sorte no amor, como o protagonista de “Café Society”, em cartaz a partir da quinta-feira 25: o ator Jesse Eisenberg interpreta um judeu inseguro que tenta conquistar a garota comprometida (Kristen Stewart) na glamourosa Los Angeles dos anos 1930.

O Rio de Janeiro já lhe ofereceu R$ 3 milhões para filmar na cidade. Por que não deu certo?

Nós realmente conversamos a respeito. Minha irmã, Letty Aronson, que também é produtora, foi ao Rio de Janeiro para conhecer a cidade e pesquisar possíveis locais de locações. Ela gostou do que viu. Eu tentei pensar em um roteiro que funcionasse no Brasil, mas não descobri nenhum.

A proposta ainda vale?

Se eu tiver uma ideia, pode acontecer. Filmarei no Rio de Janeiro. Nunca estive no hemisfério sul.

Muito perifericamente. Não me interesso muito pela política brasileira. Os países geograficamente abaixo dos EUA sempre tiveram um quê dos irmãos Marx (comediantes que atuaram de 1905 a 1949). Suas economias são historicamente instáveis.

O que espera das eleições presidenciais nos EUA?

Quero que Hillary vença. Ela é uma ótima candidata. Uma mulher inteligente, qualificada e com muita experiência. Deverá vencer.

O que acha de Donald Trump, que o sr. dirigiu em uma participação no filme “Celebridades” (1998)?

Donald foi amável no set de filmagem. Mais amável do que ele se mostra agora, durante a sua campanha. Eu raramente o vejo. Só uma vez ou outra nos jogos de basquete, em Nova York. Ele não vai ganhar. Ninguém teria chance contra Hillary, mesmo que o Partido Republicano tivesse outro candidato.

Certa vez o sr. citou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, como um de seus livros favoritos.

E ainda é. Sou fã de Machado. Eu o considero um gênio. É impressionante como um homem que viveu há tanto tempo conseguiu deixar um legado tão moderno. Seus livros poderiam ter sido escritos hoje.

Como conheceu a obra?

Um dia recebi o livro pelo correio, de uma mulher desconhecida, com um bilhete: “Acho que você vai gostar”. Como o título (em inglês, “Epitaph of a Small Winner”) dava a ideia de ser o diário de um homem insignificante, fiquei interessado. Li e achei engraçado.

O sr. mudou muito, como diretor ou em personalidade, desde que em 1966 dirigiu o seu primeiro filme, “O Que Há, Tigresa”?

Gosto de pensar que evolui artisticamente. Mas não sei se mudei como pessoa. Acho que não. Até porque tenho os mesmos hábitos, as mesmas manias, os mesmos medos e os mesmos interesses.

Encontrou um sentido para a vida, questão sempre abordada em seus filmes?

Não. E sei que nunca vou encontrar. Não há sentido nenhum na vida. Estamos aqui por um acidente da natureza, já que o universo simplesmente tomou forma, como uma ação espontânea. Vivemos e morremos. É só isso. Ninguém gosta de pensar nisso, mas eventualmente tudo vai acabar: toda a forma de existência, o sistema solar, as estrelas, os planetas, o tempo e o espaço.

Prestes a ser executado, um dos personagens de “Café Society” quer trocar o judaísmo pelo cristianismo porque os judeus não acreditam na vida após a morte. Foi apenas uma piada ou o sr. já considerou essa hipótese?

Nunca. A ideia de vida após a morte é uma besteira. Religião é uma insensatez, seja ela qual for. Não aprovo o aspecto de superstição e muito menos de grande negócio. As pessoas caem na conversa dos religiosos por terem medo e não saberem por que estão aqui ou para onde vão. Toda religião diz que pode ajudar. Mediante alguma quantia de dinheiro, obviamente.

Como consegue repetir seus temas favoritos sem cansar o público?

Escolho assuntos pelos quais as pessoas nunca deixam de se interessar, sejam elas de qualquer nacionalidade. Desde que o homem começou a contar histórias, tramas sobre amores complicados, adultério e morte estão entre as que mais intrigam a humanidade.

O sr. é venerado em diversos países, inclusive no Brasil. Como explica esse fenômeno?

Nos casos de países de língua estrangeira, devo muito a quem faz a tradução dos meus diálogos. Eles devem sofisticar o que eu escrevo.
Por que o sr. insiste em atribuir o seu sucesso a outros fatores, como tradução ou temas universais?
Prefiro ser assim a levar o crédito por algo que está fora do meu alcance. Apenas tento ver a vida com todas as suas idiossincrasias. De resto, é sorte. As pessoas gostaram do primeiro filme que escrevi e dirigi. Depois, gostaram do segundo. E me encorajaram a continuar. Mas quantos diretores começaram comigo e não seguiram em frente? Até hoje ainda espero o pior.

A sua visão pessimista do mundo não deveria ter mudado, já que tudo deu certo profissionalmente?

Talvez. Sou grato a tudo o que a vida me deu. Quem poderia imaginar que um cara como eu, que foi expulso da Universidade de Nova York logo no primeiro ano, pudesse ter uma carreira?

Como foi isso?

Fui reprovado em curso de cinema. Enquanto meus amigos conseguiram se formar em medicina e advocacia, eu nunca tive formação alguma. Entrar para o showbiz foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu sempre me pergunto: se o público não tivesse gostado das piadas que eu fazia no início de carreira, o que eu teria sido?

Como acha que ganharia a vida?

Por não ter estudado, talvez eu fosse balconista ou taxista, talvez fizesse as mesmas coisas que meu pai fez para sobreviver.

Pela sua origem humilde, o sr. poderia ter-se deixado seduzir por Hollywood. Mas sequer compareceu às cerimônias dos quatros Oscars que ganhou (de direção e roteiro por “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’’ e roteiro por “Hannah e suas Irmãs’’ e “Meia Noite em Paris’’).

Não odeio Hollywood, como muita gente pensa. Só não gosto daquele estilo de vida. É por isso que nunca moraria lá. Minha casa em Nova York não é muito grande, comparada ao padrão de Los Angeles, mas é boa. Cidades como Nova York e Paris me inspiram muito mais.

Incomoda a superficialidade de Los Angeles, aspectos que satiriza em “Café Society”?

O fato de só falarem do showbiz é cansativo. É por isso que, ao visitar a cidade e os amigos que tenho por lá, fico apenas uns dois dias. Los Angeles sofre do mal de ser monotemática. Em Nova York, caminho cinco minutos encontro com pessoas das mais diversas profissões, seja alguém da ONU ou de Wall Street.

Consegue se imaginar não trabalhando todos os dias?

Não. Do ponto de vista financeiro, não precisaria trabalhar. Mas o que eu faria o dia todo? Muita gente, que não gosta do que faz, passa o dia no escritório pensando na hora de voltar para casa. Comigo é diferente: filmando ou em reuniões, volto para casa e já recomeço a escrever. Minha mente não para nunca. Por gostar do que faço, sinto que nunca trabalhei um único dia na minha vida.

Em 2016 o sr. ainda fez a série “Crisis in Six Scenes” para a Amazon (estreia em 30 de setembro). É mais difícil manter esse ritmo aos 80 anos?

Por enquanto, não. Acabo de rodar um filme e já me sinto pronto para iniciar outro projeto. Voltando para casa, já começo a pré-produção de mais um longa-metragem. Não consigo pensar em outra coisa. Não consigo ocupar o meu dia com algo melhor que uma reunião com o desenhista de produção ou um encontro com belas atrizes para a seleção de elenco. O meu ritmo é esse.

O sr. não usa computador, só máquina de escrever…

Não preciso de computador. A minha velha máquina de escrever ainda funciona bem…

As suas filhas adolescentes (17 e 15 anos) não o encorajam a acompanhar os avanços tecnológicos?

Não adiantaria. Sou péssimo com tecnologia. Não tenho o menor desejo em me modernizar…

Nem celular o sr. tem?

Tenho um aparelho só para receber e fazer chamadas, mas ele ganhou recentemente uma nova função. A minha assistente colocou nele todas as gravações de jazz da minha banda, o que facilitou muito a vida. Como toco clarineta todos os dias, agora não preciso mais carregar a vitrola e os meus discos quando viajo. É só colocar o fone de ouvido e praticar. É maravilhoso.

Gosta de música brasileira?

Gosto daquele compositor que fazia letras tristes de amor. Como é mesmo o nome dele?

Vinícius de Moraes?

Ele mesmo. Já não me lembro mais de nada (risos).