Tudo na vida de Bebel Gilberto, de 57 anos, é música. Filha de João Gilberto (1931-2019), inventor da batida de violão que influenciou a música mundial, e da cantora Miúcha (1937-2019), intérprete de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Bebel não degenerou: virou cantora.

Sempre ligada à bossa, mas muito sua, eletrônica, cool, reverenciada no exterior, Bebel volta para casa ao lançar João, álbum em que, pela primeira vez, canta músicas simbólicas da discografia do pai. Gravado entre 2020 e 2021, o disco, que traz uma foto do pai beijando a filha, registro feito pela mãe, foi gravado em Nova York, onde Bebel morou por muitos anos antes de retornar ao Brasil, em 2020.

Entre as canções escolhidas por Bebel estão clássicos como Caminhos Cruzados, O Pato, É Preciso Perdoar, Adeus América, Eu Vim da Bahia, Valsa (Como São Lindos os Youguis) e Undiu – as quatro últimas, do lendário “disco branco” de João, de 1973. Algumas delas, Bebel canta pela primeira vez. Com produção dividida entre ela e o pianista americano Thomas Bartlett, o álbum João tem arranjos do guitarrista brasileiro Guilherme Monteiro – com muitas intervenções de Bebel, como conta a cantora em entrevista ao Estadão.

No papo, por aplicativo de vídeo, Bebel estava sentada embaixo de uma árvore no Central Park, em Nova York. Entre a emoção de falar do álbum e contar curiosidades sobre João Gilberto, ela lidava com a cachorrinha Ella, uma shih tzu cor de café com leite, que brincava pela grama. “O nome dela é Ella É Carioca (música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes). De batismo é Ela B. Gilberto”, explica Bebel. Até nisso ela é música.

João Gilberto é considerado um dos grandes gênios da música. Como foi encarar esse repertório, regravar o que ele cantou?

Se eu não fosse filha do meu pai, seria fã dele. A força veio da vontade de fazer uma homenagem, de cantar as músicas que eu nunca tinha cantado antes, nunca tinha tido a ousadia. Eu também não quis ir por esse lado (gravar as músicas do pai), né? Podia estar muito bem… Mas, se eu fizesse isso, não teria escrito tantas canções como fiz ao longo da minha carreira. Esse álbum é uma carta de amor para ele, uma homenagem. Talvez eu me sinta mais tranquila de fazê-lo agora que ele não está mais aqui. Não vou ser tão criticada, ou, talvez, abençoada (por ele). Nunca vou saber.

Você já tinha essa ideia quando ele estava vivo?

Sim. No disco Agora (2020) já tinha uma música em homenagem a ele. Talvez para aliviar minha culpa na questão da interdição (em 2019, João Gilberto estava doente e com problemas financeiros). Aliás, foi por esse motivo que eu voltei a morar no Brasil. Queria ficar com ele.

A interdição do João foi algo que você precisou fazer?

Era obrigação minha como cria. Pensei que seria um escândalo muito maior se eu não tivesse feito nada. Nunca pensei que ia me meter em tamanha confusão, como sempre. Não pensei que seria tão criticada e atacada até pelo meu irmão (o músico João Marcelo). Só dei conforto ao meu pai. Eu o ajudei muito. Esse disco do Sesc (João Gilberto ao Vivo) nunca teria saído se não fosse minha participação na curatela. Ele chegou a ouvir, aprovou, superbem remixado e remasterizado, repertório de primeira, músicas exclusivas ao qual o público merece ter acesso. Estava tudo parado há muito tempo, infelizmente pelas maluquices das pessoas que cuidavam dele e por ele mesmo. Você sabe como são os artistas, não? Nem todos são organizados.

Essa informação é importante: João Gilberto ouviu e aprovou o lançamento desse álbum póstumo…

Claro! Ouviu no dia do último aniversário dele. É muito bonito. Ele estava em uma ótima fase. Fiquei curiosa para saber quem o papai estava namorando nessa época (risos).

Essas questões burocráticas não estão mais com você atualmente?

Tudo está em segredo de Justiça. Não quis ser inventariante. Eu queria cuidar do meu pai vivo, dar o conforto que ele merecia. Nunca estive interessada em direitos, essas coisas. Diante de tudo o que eu enfrentei, os 17 boletins de ocorrência que registrei, inclusive de agressão, lavei as minhas mãos. O Ministério Público escolheu um representante para o processo (nesse momento, Bebel diz que a entrevista era para falar de seu novo álbum).

Voltemos ao álbum, então. Na questão musical, o que você buscava?

Fomos muito comportados. Começávamos a gravar às 14h, às 19h terminávamos. Ninguém bebia… Chamei o Guilherme Monteiro (guitarrista), que é um cara muito minucioso. Ele entendeu o que eu queria, que eram as músicas com as mesmas repetições, sem inventar acordes. Aquela maluquice que o papai fazia. Queria que ficasse com a cara dele.

Você mergulhou mais nas suas memórias ou nos discos do João?

Algumas memórias, mas muito nos discos dele. Havia músicas que eu não acompanhei ele tocar. O “disco branco” (João Gilberto, 1973) foi feito quando eu morava no Brasil, com meus avós. Então, era uma referência para eu chegar pertinho dele.

Você pegou quatro músicas desse disco. Foi, então, essa questão de afetividade que pesou?

Pode ser. Acho que ele iria ficar surpreso ao me ver cantar Eu Vim da Bahia. Ele nunca me ouviu cantando. Ele ia adorar, eu tenho certeza. Em É Preciso Perdoar acho que fiz um bom trabalho, não o imitei tanto. A que mais me deu trabalho foi Caminhos Cruzados. Gravei em dois tons, e depois mudei. Eu chamei o Guilherme (Monteiro), mas quem arranjou mesmo fui eu. Eu dava a direção.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.