Às vésperas do Dia Mundial do Coração, comemorado em 29 de setembro, sociedades médicas nacionais anunciaram mudanças que vão influenciar a maneira como os brasileiros cuidam – ou deveriam cuidar – do coração. Mais rígidas, as novas diretrizes visam ajudar médicos a identificar os riscos cardiovasculares e a manejar as alterações nos níveis de colesterol, a fim de prevenir doenças como hipertensão, infarto e AVC.
A primeira medida, feita em conjunto pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Sociedade Brasileira de Nefrologia e Sociedade Brasileira de Hipertensão, está relacionada à atualização da classificação de risco para pressão arterial. A famosa medida 12 por 8, até vista como sinônimo de saúde, agora faz parte da categoria pré-hipertensão. O mesmo vale para os valores entre 13,9 e 8,9 (120–139 mmHg de pressão sistólica e/ou 80–89 mmHg de pressão diastólica). Já a segunda diretriz, também da SBC, diz respeito a novos parâmetros para controlar os níveis de colesterol e triglicerídeos no sangue. Os limites mínimos para o LDL, conhecido como o “colesterol ruim”, ficaram mais rigorosos [veja o quadro].
Divulgadas no 80º Congresso Brasileiro de Cardiologia, que aconteceu em setembro em São Paulo (SP), as orientações refletem a dimensão do problema: as doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no Brasil e no mundo. Por aqui, de acordo com a SBC, elas causam 400 mil vítimas todos os anos. “Grande parte dessas mortes poderiam ser postergadas com ações de baixo custo, que vão desde conscientizar a população a oferecer tratamento adequado”, afirma o cardiologista Paulo Caramori, presidente da SBC e chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital São Lucas da PUC-RS. “Hoje temos medicamentos de ponta para doenças cardiovasculares, que apesar de baratos, ainda não estão disponíveis na rede pública”, completa.
O que muda na prática?
A atualização levou a uma preocupação geral: que quem tem pressão em 12 por 8 vai precisar tomar remédios? Não necessariamente. “A hipertensão ainda é diagnosticada por uma pressão maior ou igual a 14×9, confirmada em mais de uma ocasião. A nova diretriz tem caráter preventivo: a pré-hipertensão é um sinal amarelo”, compara o médico cardiologista Luciano Drager, do Instituto do Coração (InCor), professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Segundo ele, apenas quem tem maior risco cardiovascular, com outros indicativos, como histórico ou comorbidades, pode precisar de tratamento medicamentoso quando for constatada a pré-hipertensão, caso as melhorias nos hábitos não sejam suficientes.
Já as últimas orientações quanto aos níveis de colesterol, incluem a redução dos limites máximos do LDL para evitar doenças como a aterosclerose, que é a formação de placas de gordura, capazes de obstruir as artérias e levar a infartos e AVCs. Além disso, os especialistas recomendam a checagem dos níveis de uma proteína conhecida como Lipoproteína A ou LP(a). “A LP(a) é mais de cinco vezes mais apta a promover doença aterosclerótica do que o próprio LDL”, esclarece a cardiologista Maria Cristina Izar, Presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), uma das autoras do documento.
Outro destaque é a criação de um novo grupo de risco. Às categorias de baixo risco, risco intermediário e alto risco, acrescentou-se a de risco extremo. “É a pessoa com histórico de múltiplos eventos cardiovasculares – quem já teve infarto, AVC, precisou colocar stents ou ponte de safena – ou pelo menos um dos eventos, somados a dois ou mais fatores de risco, como idade maior que 65 anos, diabetes, hipertensão, tabagismo”, esclarece Drager.
O que a obesidade tem a ver com as doenças do coração?
Hoje, 14 milhões de brasileiros convivem com alguma doença cardiovascular, segundo o Ministério da Saúde. Paralelamente, o Atlas Mundial da Obesidade 2025 mostrou que 31% dos brasileiros vivem com obesidade. Não é coincidência.
A obesidade é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Isso porque, em resumo, o excesso de gordura corporal afeta o funcionamento do coração e dos vasos sanguíneos. Pensando nesses riscos, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), com apoio de outras entidades médicas, lançou uma nova diretriz para tratamento de obesidade com ênfase na prevenção de doenças cardiovasculares.
O documento determina que os pacientes com sobrepeso ou obesidade tenham sua condição cardiovascular avaliada e categorizada de forma padronizada, usando o que se chama de score Prevent – uma ferramenta que calcula a probabilidade de infarto, AVC e insuficiência cardíaca nos dez anos seguintes de vida do paciente.
“É possível ter um paciente com índice de massa corporal (IMC) considerado de obesidade, mas risco cardiovascular relativamente baixo, e outro com sobrepeso já apresentando alto risco”, ressalta o endocrinologista Marcello Bertoluci, diretor do Departamento de Cardiometabolismo da Abeso e diretor do Departamento de Dislipidemias da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). “A proposta atual é focar também em reduzir os riscos de pacientes obesos para doenças cardiovasculares com medicações específicas para isso”, acrescenta.
A boa notícia é que os novos medicamentos usados no combate à obesidade, as populares “canetas emagrecedoras”, têm se mostrado eficazes também na diminuição do risco de doenças cardiovasculares. Uma pesquisa recente do American College of Cardiology, por exemplo, mostrou que a tirzepatida (Mounjaro) reduziu em 38% o risco de morte cardiovascular, em comparação com placebo.
Essa é uma das razões pelas quais os especialistas protestaram quando a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), que assessora o Ministério da Saúde, decidiu não incorporá-las na rede pública por conta do impacto financeiro – o valor estimado seria de R$ 8 bilhões anuais, pelas contas da pasta. Para Bertoluci, no entanto, o investimento se traduziria em redução de custos com comorbidades e hospitalizações relacionadas à obesidade no futuro.
Para toda a vida
É claro que os medicamentos contra a obesidade, contudo, não vão resolver os altos índices de doenças cardiovasculares no Brasil por si só. Para começar, é preciso reforçar a prevenção. Uma pesquisa mundial inédita, realizada pelo Global Heart Hub, com a participação do Instituto Lado a Lado pela Vida, mostrou que apenas metade dos brasileiros afirmou estar ciente da ligação entre colesterol alto e doenças cardíacas.
“Infelizmente, ainda temos um baixo grau de conhecimento da população quanto aos fatores relacionados às principais doenças preveníveis”, alerta a cardiologista Ariane Vieira Scarlatelli Macedo, membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida. “Hoje, na verdade, há um aumento da desinformação, que precisamos combater”, acrescenta.
Outro desafio é a baixa adesão ao tratamento. Também de acordo com a pesquisa, só metade dos pacientes fez mudanças no estilo de vida após o diagnóstico de colesterol alto. “Depois do diagnóstico de câncer, o tratamento pode durar de meses a anos, e o paciente sabe que precisa seguir as orientações médicas por aquele período”, compara Macedo. “Já no caso das doenças crônicas, um controle rigoroso de pressão, diabetes, colesterol, vai exigir um compromisso diário com a saúde”, acrescenta.
A jornalista Tatiane Generali, 40, que o diga. Sem nenhum sintoma, ela descobriu que tinha os níveis de colesterol elevados em exames de rotina, ainda adolescente. “Comecei a tomar medicação, mas, quando vi que os níveis estavam controlados, acabei relaxando”, conta. Algum tempo depois, os níveis voltaram a subir, mesmo com atividades físicas e alimentação balanceada. “Minha médica, então, me explicou que eu precisaria da medicação para o resto da vida”, relata. A condição, no caso de Tatiane, é genética. O filho dela, que tem apenas 7 anos, também mantém bons hábitos para controlar o colesterol. “A alimentação é onde derrapamos um pouco. Mas, por incrível que pareça, meu filho já entendeu que doce, só nos finais de semana”, conta.
Manter uma dieta equilibrada é uma das recomendações dos especialistas para mudar as estatísticas. As orientações, aliás, continuam as mesmas do passado. A vida moderna, entretanto, trouxe novos obstáculos, como a popularização dos vapes, o aumento da obesidade e o próprio envelhecimento da população. Diante desse cenário, Paulo Caramori destaca que a prevenção tem de ser iniciada cedo.
“A incidência das doenças cardiovasculares, de fato, atingem um pico perto dos 60 anos. Não devemos, porém, nos ater à idade, uma vez que o perfil das pessoas acometidas pelos eventos é amplo”, resume o presidente da SBC. Hoje é mais comum, por exemplo, vermos crianças com colesterol alto, assim como infartos em pessoas com menos de 50 anos.
A implantação de políticas públicas, com campanhas de prevenção e acesso a exames e tratamentos, também são fundamentais. “De cada dez pessoas que lerem essa reportagem, quatro podem morrer de doenças cardiovasculares. Muitas delas não sabem que têm os sintomas, e outras não buscam assistência (por não entender a gravidade do problema)”, diz. “Mas não é só a morte que conta, é a qualidade de vida também”, conclui.