As feministas a detestavam. Os padres nutriam por ela um respeito temeroso. Os presidentes da República suspiravam quando chegava ao Palácio do Planalto sem marcar audiência. Impunha suas ideias e exigia que os compromissos firmados com ela fossem honrados. Só relaxava e abria o sorriso quando estava entre as crianças… desde que elas se comportassem. Uma mistura de autocracia e ternura, missão e martírio: eis como o jornalista Ernesto Rodrigues retrata a médica catarinense Zilda Arns Neumann no livro “Zilda Arns — Uma Biografia”, lançamento da editora Rocco.

“Zilda Arns era católica e conservadora. Mas, apesar de sua fé, nunca deixou de se render às evidências científicas” Ernesto Rodrigues, escritor e biógrafo

Rodrigues demonstra que Zilda só conseguiu levar adiante projetos sociais, como as pastorais da Criança e da Pessoa Idosa, porque aliou a vontade forte ao gênio administrativo. “Mesmo conservadora e antifeminista, Zilda era empoderada”, afirma Rodrigues. “Lutou por um ideal igualitário e morreu em ação, fazendo o que mais amava: o bem.” O livro é resultado de cinco anos de pesquisas, que também deram origem ao documentário “O Sonho de Tipsi”, de 2015. O apelido “Tipsi” (“bonequinha”, em alemão) Zilda ganhou na família alemã e católica onde nasceu, no povoado de Forquilhinhas, Sul de Santa Catarina. A menina de olhos verdes era a caçula de 13 irmãos, oito dos quais se tornariam religiosos — o mais famoso Paulo Evaristo, futuro arcebispo da diocese de São Paulo. O pai, Gabriel, obrigava os filhos a trabalhar na olaria. Mesmo assim, Tipsi tinha tempo para estudar, brincar e seguir a mãe, Helene, nos partos que fazia na região. A experiência inspirou-a a cursar Medicina na Universidade Federal do Paraná e se especializar em Pediatria. Dos pais, herdou o gosto por formar família sólida. Casou–se e teve quatro filhos.

Conspiração

Para chegar aonde queria, Zilda lutou contra políticos, ativistas sociais e até Deus­ — ou, pelo menos, alguns de seus supostos representantes na Terra. Incisiva, ela pressionava os presidentes a liberar recursos para a Pastoral da Criança. Fez campanhas pelo soro caseiro e a saúde dos bebês. Nos anos 2000, afrontou a opinião pública ao se declarar contra o uso da camisinha. E foi a única voz discordante na votação da lei que permite o abordo de anencéfalos, provocando a ira das feministas. “Ela perdia sem titubear”, diz Rodrigues. Exemplo da teimosia, ajudou na elaboração da “multimistura”, suplemento alimentar feito de resíduos orgânicos, e o defendeu até que cientistas provassem sua ineficiência. “Apesar de sua fé, nunca deixou de se render às evidências científicas”, afirma.

Além de indignação, Zilda gerava ciúmes. Um dos pontos inéditos da biografia está em evidenciar as conspirações que a ala conservadora da igreja católica urdiu para derrubar dom Paulo, a Teologia da Libertação — e Zilda. Outras pastorais, como a do Menor, sentiam-se lesadas pela proteção que dom Paulo dava à irmã. Quando foi ao Vaticano em busca de verbas, ela obteve uma negativa do cardeal Alfonso López Trujillo, chefe do Conselho Pontifício para a Família. Ele acusou Zilda de “comunista, como seu irmão”. Zilda saiu tão furiosa da sala que bateu o pó dos sapatos.

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Apesar dos confrontos com variadas áreas sociais, Zilda recebeu prêmios e foi indicada ao prêmio Nobel da Paz. Desde 2015, corre o processo de sua beatificação. Para convertê-la em santa, o Vaticano parece ainda não estar contente com a profusão de milagres que ela fez em vida.


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