O Brasil precisa urgentemente de duas vacinas: uma é contra a Covid-19 que já matara cerca de 160 mil pessoas até a quarta-feira 28; a segunda é para neutralizar uma peste chamada Jair Bolsonaro, que desdenha de toda essa tragédia. Creia, leitor, que a profilaxia em relação à doença logo será consolidada pela comunidade científica, que trabalha com seriedade. Quanto ao antídoto político, o mais eficaz seria a compulsória institucionalização do presidente da República em uma casa de custódia para tratamento psiquiátrico. Prova disso é que uma de suas últimas falas, de tão ironicamente gelada e desumana, parece saída do livro de contos “O cobrador”, do saudoso escritor Rubem Fonseca. “Não sei a razão de tanta pressa rumo à vacina”, disse Bolsonaro. São frases desse tipo que confundem as coisas, pois causam polêmicas quando se carece de serenidade.

UNIÃO O governador Doria (à esq.) e Dimas Covas: incansáveis na luta contra a Covid (Crédito:Sergio Andrade)

Não bastasse isso, Bolsonaro age nos bastidores com sanha protelatória para que não tenhamos tão cedo a vacina. A mais evidente dessas manobras de protelação foi emperrar o máximo possível as importações de insumos indispensáveis para a sua produção no País. Tão absurda e criminosa era essa situação que a própria Anvisa não mais aguentou ser desclassificada e aprovou na quarta-feira 28 a importação de tais insumos para a produção da Coronavac. “Cada dia que esperamos a autorização significou um dia a menos de vacina”, diz o hematologista Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, um dos mais conceituados em todo o mundo.

Em São Paulo, onde está sediado, o Instituto Butantan tem capacidade de transformar seis milhões de doses em quarenta e seis milhões. Está com os laboratórios prontos, mas eles seguirão parados enquanto esses insumos não desembarcarem nas mãos dos pesquisadores. Houve autorização de importação, mas é preciso que não fiquem retidos em malhas burocráticas. Nesse momento, o Brasil se encontra em um lugar que nenhum outro país, em meio à pandemia, queria estar. O presidente da República escolhe o jogo político, ideológico e partidário quando deveria privilegiar a saúde da população. “Não pode um juiz decidir se você vai ou não se vacinar”, declarou Bolsonaro. O que ele quer com isso? Tumultuar, criar notícias que vão minando a estabilidade institucional, colocar em prática a tática diversionista com nítido interesse eleitoreiro. O governador de São Paulo, João Doria, definiu de forma exemplar: “Não é uma questão de Justiça, mas, isso sim, de saúde”.

As falas de Bolsonaro, de tão geladas e desumanas, parecem saídas
do livro de contos “O cobrador”, do saudoso Rubem Fonseca

Na coxia de cada teatral polêmica que Bolsonaro levanta, estão a intenção e a estratégia protelatórias. Assim, na semana passada, ele veio com mais um desatino, e isso em um instante no qual os brasileiros estão sob a ameaça de um inimigo invisível. O presidente decretou o início dos estudos visando a conceder à iniciativa privada as Unidades Básicas de Saúde. O decreto significava dar o primeiro passo na direção da privatização do SUS — é mais ou menos como privatizar o ar que respiramos. Despencou sobre Bolsonaro uma avalanche de críticas (de médicos, cientistas, juristas e políticos), e ele, no seu estilo vaivém, voltou atrás em vinte e quatro horas: acerta quem pensar que, dessa forma, ganhou mais dia de distanciamento na concentração de esforços pela vacina.

POLÊMICA Depois de pressionado, Barra Torres, da Anvisa, liberou os insumos (Crédito:Divulgação)

O capitão sabe como mudar o foco quando os seus valores ideológicos passam a ser indefensáveis, feito o princípio de que não precisa vacina porque “todo nós temos mesmo de morrer um dia” (é ou não é um caso grave de casa de custódia?). Afinal, para o presidente, “vacinação obrigatória somente para o meu cachorro” — fazemos, aqui, a ressalva de que cães têm mesmo de serem vacinados contra doenças que podem lesá-los, o que não significa deixar de lado a vacinação humana. “Uma vacina com eficácia diminui a circulação do vírus, a ocorrência de casos graves e, consequentemente, o número de mortes”, afirma o infectologista Jean Gorinchteyn, secretário de Saúde do Estado de São Paulo. “Precisamos de uma vacina já que o coronavírus veio para ficar”.

O governo federal e a Anvisa não apenas retardaram o processo como tentaram fazer com que se consolidasse no Brasil uma espécie de estado de não vacina. O diretor-presidente do órgão é o contra-almirante Antonio Barra Torres, entusiasta da cloroquina (cuja eficácia faz-se nula). Para William Dib, ex-presidente da agência, a Anvisa está hoje a “serviço do governo”. De um governo propagador de asnices, e eis mais uma delas advinda de Bolsonaro: “é melhor descobrir a cura da pandemia do que mover esforços para a vacinação”. Não adianta correr para avisá-lo de que pandemias não têm curas na história da humanidade, e somente vacinas as eliminam. Ele jamais vai ouvir. E, se ouvir, certamente não entenderá absolutamente nada.