30/10/2020 - 9:30
O Brasil precisa urgentemente de duas vacinas: uma é contra a Covid-19 que já matara cerca de 160 mil pessoas até a quarta-feira 28; a segunda é para neutralizar uma peste chamada Jair Bolsonaro, que desdenha de toda essa tragédia. Creia, leitor, que a profilaxia em relação à doença logo será consolidada pela comunidade científica, que trabalha com seriedade. Quanto ao antídoto político, o mais eficaz seria a compulsória institucionalização do presidente da República em uma casa de custódia para tratamento psiquiátrico. Prova disso é que uma de suas últimas falas, de tão ironicamente gelada e desumana, parece saída do livro de contos “O cobrador”, do saudoso escritor Rubem Fonseca. “Não sei a razão de tanta pressa rumo à vacina”, disse Bolsonaro. São frases desse tipo que confundem as coisas, pois causam polêmicas quando se carece de serenidade.
Não bastasse isso, Bolsonaro age nos bastidores com sanha protelatória para que não tenhamos tão cedo a vacina. A mais evidente dessas manobras de protelação foi emperrar o máximo possível as importações de insumos indispensáveis para a sua produção no País. Tão absurda e criminosa era essa situação que a própria Anvisa não mais aguentou ser desclassificada e aprovou na quarta-feira 28 a importação de tais insumos para a produção da Coronavac. “Cada dia que esperamos a autorização significou um dia a menos de vacina”, diz o hematologista Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, um dos mais conceituados em todo o mundo.
Em São Paulo, onde está sediado, o Instituto Butantan tem capacidade de transformar seis milhões de doses em quarenta e seis milhões. Está com os laboratórios prontos, mas eles seguirão parados enquanto esses insumos não desembarcarem nas mãos dos pesquisadores. Houve autorização de importação, mas é preciso que não fiquem retidos em malhas burocráticas. Nesse momento, o Brasil se encontra em um lugar que nenhum outro país, em meio à pandemia, queria estar. O presidente da República escolhe o jogo político, ideológico e partidário quando deveria privilegiar a saúde da população. “Não pode um juiz decidir se você vai ou não se vacinar”, declarou Bolsonaro. O que ele quer com isso? Tumultuar, criar notícias que vão minando a estabilidade institucional, colocar em prática a tática diversionista com nítido interesse eleitoreiro. O governador de São Paulo, João Doria, definiu de forma exemplar: “Não é uma questão de Justiça, mas, isso sim, de saúde”.
As falas de Bolsonaro, de tão geladas e desumanas, parecem saídas
do livro de contos “O cobrador”, do saudoso Rubem Fonseca
Na coxia de cada teatral polêmica que Bolsonaro levanta, estão a intenção e a estratégia protelatórias. Assim, na semana passada, ele veio com mais um desatino, e isso em um instante no qual os brasileiros estão sob a ameaça de um inimigo invisível. O presidente decretou o início dos estudos visando a conceder à iniciativa privada as Unidades Básicas de Saúde. O decreto significava dar o primeiro passo na direção da privatização do SUS — é mais ou menos como privatizar o ar que respiramos. Despencou sobre Bolsonaro uma avalanche de críticas (de médicos, cientistas, juristas e políticos), e ele, no seu estilo vaivém, voltou atrás em vinte e quatro horas: acerta quem pensar que, dessa forma, ganhou mais dia de distanciamento na concentração de esforços pela vacina.
O capitão sabe como mudar o foco quando os seus valores ideológicos passam a ser indefensáveis, feito o princípio de que não precisa vacina porque “todo nós temos mesmo de morrer um dia” (é ou não é um caso grave de casa de custódia?). Afinal, para o presidente, “vacinação obrigatória somente para o meu cachorro” — fazemos, aqui, a ressalva de que cães têm mesmo de serem vacinados contra doenças que podem lesá-los, o que não significa deixar de lado a vacinação humana. “Uma vacina com eficácia diminui a circulação do vírus, a ocorrência de casos graves e, consequentemente, o número de mortes”, afirma o infectologista Jean Gorinchteyn, secretário de Saúde do Estado de São Paulo. “Precisamos de uma vacina já que o coronavírus veio para ficar”.
O governo federal e a Anvisa não apenas retardaram o processo como tentaram fazer com que se consolidasse no Brasil uma espécie de estado de não vacina. O diretor-presidente do órgão é o contra-almirante Antonio Barra Torres, entusiasta da cloroquina (cuja eficácia faz-se nula). Para William Dib, ex-presidente da agência, a Anvisa está hoje a “serviço do governo”. De um governo propagador de asnices, e eis mais uma delas advinda de Bolsonaro: “é melhor descobrir a cura da pandemia do que mover esforços para a vacinação”. Não adianta correr para avisá-lo de que pandemias não têm curas na história da humanidade, e somente vacinas as eliminam. Ele jamais vai ouvir. E, se ouvir, certamente não entenderá absolutamente nada.