A Anvisa permitiu que se criasse um clima de terror em torno de um suposto efeito adverso grave do imunizante em um voluntário dos testes clínicos de 32 anos, acompanhado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que morreu em São Paulo. A questão é que ele se suicidou e sua morte não tem a ver com os testes. E Bolsonaro, num evidente esforço manipulador, aproveitou a notícia, tratou de espezinhar a vacina e levou sua disputa política com o governador paulista João Doria para o nível da insanidade. No dia seguinte à interrupção, diante do clamor popular e da recomendação expressa do Comitê Internacional Independente, que analisa os estudos da Coronavac e da Comissão Nacional de Ética em pesquisa, a Anvisa voltou atrás e autorizou a retomada dos testes, mas o estrago estava feito.

PARA BOI DORMIR O diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, tenta explicar a inexplicável decisão de interromper os testes da Coronavac (Crédito:GABRIELA BILO)

Em meio a uma pandemia que ceifou a vida de 164 mil brasileiros até agora, perdeu-se um tempo precioso com informações deturpadas e incompletas, que multiplicam a insegurança e a incerteza na sociedade. A confusão criada pelo presidente teve um efeito desestabilizador, deu munição para os negacionistas e visou reforçar o preconceito contra a vacina chinesa. Além disso, assustou potenciais voluntários em participar dos ensaios clínicos da Coronavac no Brasil e colocou o sistema de vigilância sanitária sob suspeita. A tensão cresceu tanto que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, deu um prazo de 48 horas para a Anvisa explicar os critérios de estudos da Coronavac. Mandou também a agência informar o estágio de aprovação de todas as vacinas sob sua análise.

“Não havia a menor possibilidade do paciente ter morrido por causa de um efeito grave da Coronavac” Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan (Crédito:NELSON ALMEIDA)

Defesa ideológica

“Morte, invalidez, anomalia. Essa é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomar. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, afirmou Bolsonaro pelo Twitter para comemorar a suspensão dos testes e atacar o governador de São Paulo, como se a saúde das pessoas fosse um grande jogo e a eliminação de uma esperança de cura lhe deixasse satisfeito. O objetivo específico de Bolsonaro é desacreditar Doria e, para isso, converteu a Anvisa, dirigida por seu amigo e aliado ideológico, o almirante Antônio Barra Torres, em puxadinho do governo. “Bolsonaro não pode transformar a Anvisa em agência nacional da defesa ideológica”, disse Doria com exclusividade à ISTOÉ.

Em nenhum outro país em que a Coronavac vem sendo testada houve qualquer problema até agora ou alguma desaprovação. Aqui, porém, a estratégia de comunicação da Anvisa, que, como aconteceu com o Ministério da Saúde, está sendo ocupada por militares, e a desfaçatez do presidente transformaram uma questão técnica que poderia ser resolvida com um simples diálogo em um problema político de grandes proporções. Na quinta-feira 13, o governo anunciou a nomeação de mais um oficial para a diretoria da agência, o tenente-coronel do Exército Jorge Luiz Kormann.“A politização da ciência atrapalha demais o avanço das pesquisas”, afirmou a microbiologista da USP Natalia Pasternak. “Todas as vacinas serão necessárias e a Coronavac é tão promissora quanto as outras que estão sendo estudadas”.

“Bolsonaro não pode transformar a Anvisa em agência nacional da defesa ideológica” João Doria, governador de São Paulo (Crédito: Adriano Machado )

Colocado em xeque após suspender o estudo da vacina e ver sua ação sendo usada politicamente por Bolsonaro, Barra Torres alegou que recebeu, segunda-feira, o comunicado da ocorrência de um evento grave do Instituto Butantan, mas sem informações sobre a causa do óbito. Nesse momento, explicou, a área técnica do órgão, assim como fez anteriormente com pesquisas da AstraZeneca e da Janssen-Cilag, suspendeu os testes a fim de verificar o que tinha ocorrido. “A suspensão sempre é feita após discussões de um colegiado, diante da insuficiência de informações sobre um evento adverso grave e não esperado”, explicou Barra Torres, acrescentando que a Anvisa não pode ficar sabendo que houve algum problema e não fazer nada e reforçando o caráter técnico da decisão do órgão de interromper os testes.

O Instituto Butantan, porém, que desenvolve a vacina junto com o laboratório chinês Sinovac, informou que, desde o dia 6, havia comunicado a agência sobre a causa do óbito. “Não havia a menor possibilidade do paciente ter morrido por causa de um efeito adverso grave da Coronavac”, disse, surpreso, o diretor-presidente do Butantan, Dimas Covas. “Suspenderam o estudo, causaram medo nas pessoas, fomentaram um ambiente que já não é muito propício ao fato de essa vacina ser feita em associação com a China. Fomentar isso a troco de quê? Não seria mais justo ligar e falar que uma reunião estava marcada para esclarecer isso. Não seria mais justo, ético e compreensível?”, perguntou. Bolsonaro e Barra Torres, que divulgou para a imprensa a decisão de interromper os testes no horário do Jornal Nacional sem avisar o Instituto Butantan com antecedência, deveriam responder.

“Essa politização da doença atrapalha demais o avanço das pesquisas” Natalia Pasternak, microbiologista da USP (Crédito:Divulgação)

Unidade política

O infectologista e especialista em saúde pública Hélio Bacha viu com grande preocupação a suspensão dos estudos da Coronavac pela Anvisa, ainda que por um só dia. Para ele, a vacina é a grande arma estratégica para se controlar uma pandemia no mundo e para se ter vacina é preciso que haja transparência e, principalmente, unidade política, com vontade de se conseguir algo eficaz para imunizar a população. “O desenvolvimento de vacinas é uma ação ousada dos laboratórios, em termos de investimento em uma coisa que pode ou não dar certo”, afirmou. “Por isso, temos de aplaudir todas as iniciativas, porque apenas uma vacina não vai viabilizar a imunização ao mundo inteiro”. Bacha disse também que é preciso levar em conta que o Butantan sempre foi muito ético e sério em tudo que faz. “Espero que não haja ingerência na Anvisa porque é um órgão de Estado e não de governos. O critério sempre foi técnico e seria muito estranho que mudasse agora”, completou.

“Espero que não haja ingerência na Anvisa, que é um órgão de Estado e não de governos” Hélio Bacha, infectologista (Crédito:Divulgação)

Para o médico infectologista e pesquisador da Fiocruz Julio Croda a suspensão da pesquisa do Instituto Butantan não surpreendeu, uma vez que outras pesquisas também foram suspensas por eventos não esperados e depois retomadas. “Isso faz parte de qualquer estudo científico e o Butantan avisou no prazo certo, mas o sistema da Anvisa estava fora do ar. Tudo isso acontece. O que não é correto é a politização disso”, afirmou. Segundo o especialista, a Anvisa é composta por um time de técnicos respeitáveis e não parece que houve ingerência, até porque outros estudos foram paralisados até que se levantassem as informações — o uso político da informação é a única coisa que não faz parte dos procedimentos. O maior problema, na opinião de Croda, é a desconfiança que isso pode trazer ao processo de elaboração da vacina. “A desconfiança pode se estender para tudo. Já há voluntários que não querem mais participar e isso pode trazer desconfiança não só para as vacinas do Covid como para várias outras, ocasionando impacto na cobertura vacinal da população. A descrença nas vacinas estudadas e nas que estão aí é o maior risco”, afirmou. Para o infectologista, os comentários do presidente, que questionou a qualidade da vacina a partir de uma informação incompleta, colocaram a credibilidade técnica da Anvisa e do Instituto Butantan em xeque. “Isso tem um impacto na vida das pessoas. A população que já não entende os processos científicos fica ainda mais desconfiada de tudo”, argumentou Croda.

“Há voluntários que já não querem participar de testes e isso pode acontecer com outras vacinas” Julio Croda, médico e pesquisador da Fiocruz (Crédito:Divulgação)

A saúde da população, na verdade, é o que menos importa para Bolsonaro. Seu objetivo parece ser mesmo tumultuar os esforços de combate à doença e favorecer a proliferação de informações enviesadas. No mesmo dia em que atacou a Coronavac, o presidente entrou num transe obscurantista e passou a minimizar as mortes associadas à doença, voltando a criticar os brasileiros, algo que vem fazendo nos últimos meses, por agirem de maneira cautelosa e responsável diante da pandemia. Para ele, pelo que se pode concluir, o medo do coronavírus é só uma fraqueza, uma demonstração de covardia.

País de maricas

“Tudo agora é pandemia, tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um País de maricas”, disse em cerimônia no Palácio do Planalto. Quem chama os brasileiros de “maricas” porque temem e tomam precauções contra uma doença mortífera está disposto a fazer uma loucura a qualquer momento. A declaração homofóbica repercutiu internacionalmente, assim como a interrupção dos testes da vacina.

As mentiras e a nuvem de fumaça criadas em torno da Coronavac fazem parte de uma clara manobra de Bolsonaro de politização da pandemia e visam transformar a Anvisa numa centro promotor de contrainformação, esvaziando sua função técnica. O aumento da presença militar na sua diretoria, assim como no Ministério da Saúde, não acontece por acaso. Pelo que se vê, o presidente tenta usar a agência para neutralizar os serviços de informação científica, que ele trata como inimigos. No fundo, é um recurso para impedir ou dificultar o acesso da sociedade às informações verdadeiras. É também uma falta de responsabilidade e uma atitude criminosa. Como sempre, em vez de apagar o fogo, Bolsonaro põe mais lenha na fogueira. Enquanto fomenta o medo e o descrédito sobre uma vacina que poderá salvar muitas vidas, ele comemora a morte e o caos.

Eficácia na imunização

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Quatro vacinas se encontram na fase 3 de testes clínicos no Brasil, quando se aplica em seres humanos. É o caso da Coronavac, do imunizante da AstraZeneca, desenvolvido em conjunto com a Universidade de Oxford, da Pfizer e da Jansen-Cilag. Na segunda-feira 10, a Pfizer anunciou que sua vacina, testada em 43,5 mil pessoas de seis países, tem 90% de eficácia. Apesar de ainda não ter divulgado o seu índice de eficácia, a Coronavac deve estar próxima da Pfizer, segundo o coordenador do Centro de Contigência do Coronavírus de São Paulo, João Gabardo. A da Oxford também ainda espera pelo atestado de eficácia, assim como a da Janssen-Cilag. A OMS afirma que índices acima de 50% são considerados bons para que uma vacina seja licenciada.