24/11/2024 - 7:00
A atual guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, ganhou uma nova dimensão global nas últimas semanas e, mais uma vez, se tornou motivo de preocupação para a comunidade internacional.
Na última quinta-feira, 21, a Rússia disparou um míssil balístico de alcance intermediário, – classificado como “experimental” – contra a cidade de Dnipro, na Ucrânia. De acordo com autoridades do país, o projétil não era nuclear e deixou duas pessoas feridas, além de várias construções danificadas. É a primeira vez que esse tipo de armamento é utilizado por tropas russas, que o batizaram de Oreshnik (nome da árvore que produz avelã).
Por meio de um comunicado, a Diretoria Principal de Inteligência da Ucrânia (HUR) afirmou que o míssil hipersônico voou por 15 minutos e atingiu velocidade máxima de 13 mil km/h. O lançamento foi feito da região russa de Astracã e, por se tratar de uma arma de médio alcance, pode atingir alvos em um intervalo de 3.000 a 5.500 km. Para ser categorizado como intercontinental, o projétil deve chegar em pontos a mais de 5.500 km.
O “teste” acontece dois dias após o conflito completar 1000 dias e quatro depois do governo dos Estados Unidos autorizar a Ucrânia a usar armas americanas de longo alcance em território russo. Por muito tempo, existiu um receio em flexibilizar a utilização dos recursos bélicos estadunidenses – justamente pelo risco da decisão escalar o conflito para além das fronteiras ucranianas.
As palavras do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante vídeo oficial, comprovam o teor global da disputa.
“Consideramos que temos o direito de usar nossas armas contra as instalações militares daqueles países que permitem que suas armas sejam usadas contra as nossas”. […] Um conflito regional na Ucrânia, anteriormente provocado pelo Ocidente, adquiriu elementos de caráter global”, afirmou Putin.
A decisão de Biden
O atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, utilizou seus últimos meses de comando executivo para aumentar as apostas sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. No último domingo, 17, o democrata permitiu que armas americanas sejam utilizadas pela Ucrânia no conflito contra a Rússia.
Por meio de um vídeo no Telegram, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky reagiu à notícia.
“Ataques não são feitos com palavras. Essas coisas não se anunciam. Os mísseis falarão por si mesmos”, disse.
Os mísseis autorizados são do modelo ATACMS – sigla que significa Army Tactical Missile Systems (Sistemas de Mísseis Táticos do Exército dos EUA). O recurso bélico tem quatro metros de altura e pode atingir alvos de até 300 Km de distância. O armamento já era usado anteriormente, mas apenas para atacar tropas russas dentro do próprio território ucraniano.
Além do aval estadunidense, a Ucrânia recebeu autorização do Reino Unido para empregar mísseis “Storm Shadow” contra a Rússia. Produzidos para destruir alvos grandes e imóveis, as armas chegam a distâncias de 250 Km.
O fator Coreia do Norte
Segundo informações do jornal “The New York Times”, a decisão de Joe Biden relativa aos mísseis partiu de uma denúncia de Kiev sobre a presença de tropas norte-coreanas lutando ao lado das forças russas.
A Coreia do Norte teria mandado 10 mil soldados para a região russa de Kursk, a fim de auxiliar o país de Putin no conflito. A área, que tem sido alvo de ofensivas ucranianas desde agosto deste ano, já conta com a presença de tropas de Kiev ocupando uma parcela do território.
A ação foi encarada de forma negativa pelo governo americano, que garantiu uma resposta incisiva. No dia 13 de novembro, o secretário de Estado, Antony Blinken, manifestou insatisfação com a campanha da Coreia do Norte após uma reunião com o secretário-geral da OTAN.
“Tivemos uma reunião sobre o apoio à Ucrânia e este novo elemento de tropas da Coreia do Norte agora quase literalmente no combate. Isso exige e terá uma resposta firme”, declarou Blinken.
O que pode acontecer
Apesar de não nuclear, o míssil russo, ainda em fase de testes, tem a capacidade de transportar múltiplas ogivas nucleares. A ameaça de um conflito nuclear global tomou, novamente, a atenção dos debates internacionais. Por ter alcance de 5000 Km, o armamento teria como atingir a maior parte da Europa e a costa Oeste dos EUA.
De acordo com Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, o atual conflito segue uma lógica semelhante ao que acontecia na Guerra Fria – com duas potências (Estados Unidos e Rússia) disputando poder majoritariamente fora de seus territórios. Ou seja, os países oferecem patrocínio de forças e estados, deslocamento de tropas e apoio logístico em caráter limitado, mas não entram em confronto direto com o adversário.
O míssil disparado pela Rússia, inclusive, que é conhecido como Veículo de Reentrada Múltipla Independente para Alvo (MIRV), foi desenvolvido durante a época da Guerra Fria. É provável que esta seja a primeira vez que a arma tenha sido usada em “combate”.
Essa característica qualificaria a ação bélica de Vladimir Putin como uma atitude mais estratégica do que militar – com objetivo de “manter a narrativa de que a Rússia pode escalar para uma guerra nuclear, que agrada ao povo russo”, afirma Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM.
Especialistas classificam o ataque como um “recado” ao Ocidente, já que afirma o poder da Rússia de retaliar quaisquer ataques feitos ao seu território, tal como alcançar qualquer uma das potências que der suporte à Ucrânia.
“O que pode acontecer é um recrudescimento das tensões globais, porque cada lado a gente tem apostas importantes em armamentos mais pesados. Então isso pode causar uma corrida armamentista, pelo menos em escala regional, o que pode custar mais vidas e prolongar ainda mais os conflitos ou o território de operações dentro da Ucrânia”, argumenta Consentino.
Segundo Gunther Rudzit, a Rússia tende a usar mais mísseis contra alvos estratégicos, como infraestrutura de energia, comando militar e empresas de equipamentos militares. Por outro lado, visões mais otimistas afirmam que a situação configura um apelo a armas de natureza mais amplas, o que pode acelerar, de alguma forma, a busca de um acordo de paz.
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Mudanças com a posse de Trump
Com a recente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, a postura americana em relação à guerra na Ucrânia – e outros conflitos – tende a mudar.
Em diversas ocasiões, Trump criticou a exagerada ajuda econômica e militar do governo Biden à Ucrânia e prometeu que iria acabar com o confronto. Autoridades russas já afirmaram que Vladimir Putin estaria aberto a negociar um cessar-fogo em solo ucraniano com o novo presidente estadunidense – embora rejeite grandes concessões territoriais, além de se opor à adesão de Kiev à Otan.
Paulo Bittencourt, pesquisador de ciência política da USP, também destaca que os interesse internos americanos costumam contar mais nas decisões políticas, citando como exemplo o senador republicano Marco Rubio.
“Marco Rubio, enquanto senador dos EUA, apesar de se dizer um apoiador da Ucrânia, pertence a um grupo de senadores que votou contra o envio de um pacote de ajuda para a Ucrânia, para Israel e para Taiwan – apontando que questões domésticas dos Estados Unidos tinham prioridade e deveriam receber esses investimentos. De acordo com uma parte dos políticos americanos, esses investimentos não deviam ir para guerras no exterior, mas sim para os problemas domésticos dos Estados Unidos.”
*Estagiário sob supervisão