Enquanto um tribunal em Nova York se transforma em palco de um julgamento da estrutura do futebol internacional, Moscou vive um clima radicalmente diferente ao receber com pompa a cúpula da cartolagem mundial. Num esforço de demonstrar sua proximidade com a Fifa, o Kremlin deu garantias aos dirigentes que, no país de Vladimir Putin, não seriam jamais incomodados e muito menos extraditados aos Estados Unidos.

O tratamento que o governo russo planeja dar aos dirigentes da Fifa nos próximos dias é equivalente ao de chefes de estado. Para o evento mais importante, o sorteio a ser realizado nesta sexta-feira, seis mil convidados da elite econômica e política da Rússia estarão presentes. Já os cartolas, com uma moral duramente afetada nos últimos dois anos, voltarão a ser colocados no centro das atenções. Percorrerão a cidade em carros de luxo, motoristas e um amplo aparato de segurança.

A retribuição é clara: apesar de o Comitê Olímpico Internacional (COI) apontar que o presidente do Comitê Organizador da Copa, Vitaly Mutko, foi quem organizou o doping de estado entre os atletas russos, a Fifa se recusa a investigá-lo. Mutko, entre os vários cargos que teve, também foi membro do Conselho da Fifa.

Rússia e Fifa compartilham um objetivo comum: a Copa de 2018 é o instrumento que encontraram para tentar mostrar ao mundo que voltaram a ser respeitados, superaram crises e que devem ser vistos como potências.

PIOR – A relação privilegiada da corte russa com a aristocracia da Fifa vem já de 2010, quando Moscou surpreendeu o mundo e conquistou o direito de sediar o Mundial. O Kremlin havia sido a pior candidatura, segundo a avaliação técnica da entidade. Mas, no momento do voto, superou os ingleses, espanhóis e holandeses e levou o Mundial de 2018.

Documentos obtidos pelo Estado mostram que, durante meses, os russos levaram até Moscou os cartolas com suas famílias. Passagens de classe executiva e hotéis de luxo foram oferecidos a Rafael Salguero, Amos Adamu, Jack Warner, Mohammed Bin Hammam, Hany Abo Rida e Chung Mong Joon, todos eles executivos da Fifa hoje banidos do futebol e indiciados em alguns países.

Outros tantos ainda ganharam ingressos VIP para o Bolshoi e tiveram a honra de serem recebidos individualmente por Putin. Amistosos contra seleções de países que tinham cartolas na cúpula da Fifa também foram organizados.

Michel D’Hooghe, até hoje no Conselho da Fifa, ganhou um quadro de Vyacheslav Koloskov, um dos lobistas para a candidatura russa. Já Franz Beckenbauer, que também votava na época, foi premiado com um contrato para ser garoto-propaganda da Gazprom, a estatal russa que se transformou em um braço estratégico do Kremlin. No total, a campanha russa custou US$ 20 milhões e foi financiada pelo governo russo.

Quando o então investigador independente da Fifa, Michael Garcia, tentou saber o que de fato ocorria na campanha russa, descobriu que Moscou já não tinha mais os e-mails e dados do processo. Ainda assim, ele concluiu que não houve uma influência indevida por parte dos russos e, para Moscou, essa seria a prova de que o processo foi “limpo”.

Oficialmente, a explicação dos russos foi de que os computadores que guardavam os e-mails que tinham sido usados pela campanha tinham sido substituídos por versões mais modernas e que as antigas máquinas estavam num depósito. Quando o investigador chegou ao depósito, descobriu que os computadores tinham sido destruídos.

Mas foi politicamente que a Rússia se blindou. Assim que as prisões ocorreram em 2015, Putin declarou que o gesto não passava de uma revanche dos EUA por terem perdido a Copa de 2022. Além disso, recebeu o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, e insistiu que ele mereceria o Prêmio Nobel da Paz. Um ano antes, seu governo já havia dado garantias aos dirigentes da Fifa que o “caos” registrado com a Copa do Mundo no Brasil em 2014 não se repetiria em 2018.

A influência continuou sob a gestão de Gianni Infantino, a partir de 2016. O novo presidente sabia que não tinha como mudar a Copa de lugar e passou a receber um tratamento especial, inclusive voando em um jato de um empresário russo.

O Estado apurou que, agora, foi o próprio governo russo quem deixou claro a dirigentes que suas estadias em Moscou estavam blindadas de qualquer risco e que ninguém seria extraditado aos EUA. Na semana passada, Blatter confirmou à reportagem que recebeu um convite “pessoal” de Putin e que estará na final da Copa. A Rússia é, hoje, o único país para onde ele tem viajado.

Outros que se beneficiariam da proteção de Putin seriam os dirigentes que mantiveram relações como o Catar. Em Nova York, já são mais de duas dezenas as citações referentes a propinas pagas pelo país do Golfo Pérsico para ficar com o Mundial de 2022.

Indiciado nos EUA e sem poder viajar para o exterior, Marco Polo Del Nero, também recebeu um convite para estar em Moscou como presidente de federação classificada para o Mundial. Mas, para viajar, teria de ter garantias não apenas do Kremlin. Mas também de que o voo não fizesse qualquer tipo de escala até chegar à Rússia. Nem por questões climáticas. Nisso, os russos não poderiam dar garantias.