O show de Roger Waters na noite de ontem, em São Paulo, já entrou para a História roqueira tupiniquim — assim mesmo, com H maiúsculo. Esqueça Axl Rose, Madonna e Kurt Cobain. Nenhuma estrela do rock causou tanto sobre nossos palcos como o baixista, vocalista e principal letrista do Pink Floyd, uma das bandas mais importantes do gênero em todos os tempos.

Já passava da meia-noite quando o senhor de 75 anos deixou o megalomaníaco palco armado no Allianz Parque, tal qual um zagueiro ao final de um clássico do futebol brasileiro: suado, ofegante e com aquele sorriso de quem fez um pênalti bizarro numa partida das antigas, sem essa coisa monocromática de torcida única.

Waters instaurou o Fla x Flu ao escancarar uma das características mais marcantes de sua obra: a crítica contundente contra o autoritarismo. Na noite de ontem, Trump, Merkel, May, Putin, Berlusconi e Netanyahu foram alguns dos seus primeiros alvos. Mas o pavio de verdade foi aceso aos poucos, estrategicamente, durante o intervalo de 20 minutos que dividiu o espetáculo.

O racha começou com a inclusão do nome de Jair Bolsonaro, candidato à presidência pelo PSL, em uma lista exibida no telão com nomes de neofascistas espalhados pelo mundo. Foi o que bastou para que os urros brotassem. “Mito!!!” de um lado. “Ele não!!!” do outro.

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Quatro fileiras abaixo da minha cadeira, vi um homem de meia idade indo para cima de outro sujeito. Nem sei de que lado cada um deles estava. Ignorância no talo, com direito a intervenção policial. Tenso. Para um nerd do rock como eu, ficou fácil sacar que era só o começo. Afinal, Roger Waters sempre soube causar quando o assunto é autoritarismo. Para ele, a questão é pessoal.

Nascido em 6 de setembro de 1943, o músico é um dos filhos da Segunda Guerra Mundial. Seu pai, um professor e membro do Partido Comunista Britânico, juntou-se ao exército poucos meses antes do nascimento de Waters. E morreu num campo de batalha, quando seu filho tinha apenas cinco meses de idade.

Quem conhece a obra do Pink Floyd sabe que, por exemplo, “The Wall” — o disco duplo que depois virou filme — é um álbum-conceito autobiográfico. Sua narrativa baseia-se na espiral de excessos de um popstar mergulhado nas drogas e perdido em sua egotrip. Um personagem que prefere ficar confortavelmente entorpecido para encarar seus shows ou dormir sem lembrar do pai que nunca conheceu.

E aí mora o porquê da confusão armada no Allianz Parque. Será que os fãs que foram ao show conheciam de fato a obra de Roger Waters? Fiquei com a nítida impressão de que muitos dos presentes não levaram em conta o currículo do músico ao comprar seus ingressos, que custavam até abusivos R$ 810. Mais ou menos como o desavisado que vai a um show de Caetano Veloso e é pego de surpresa por algum comentário ácido do compositor baiano.

Lembrei da velha história, contada a mim há anos por um amigo jornalista, de que roqueiro brasileiro acha que “Wish you were here” (“Gostaria que você estivesse aqui”) é uma canção de amor — e não uma carta para um velho parceiro que fritou o cérebro com quantidades mastodônticas de ácido lisérgico.

Coisas de um país colonizado culturalmente, como o nosso rachado Brasil.

Provocador por natureza, bem sem noção, Waters aumentou a octanagem ao exibir a mensagem #EleNão no telão, ao final da clássica “Eclipse”, uma das faixas do fundamental “The Dark Side of the Moon”. Foi o que bastou para o barril de pólvora explodir. Os gritos multiplicaram-se, as vaias brotaram e os xingamentos bombaram: “Lixo!”, “Fora PT!”, “Fora Roger Waters!”.

E assim foi até o final da noite, com as duas últimas canções do show: “Mother” e “Comfortably Numb”. E o Fla x Flu comendo solto.

Show de Roger Waters levou multidão ao Allianz Parque (Crédito:Hélio Gomes)

Saí do estádio ainda atônito. Se o objetivo de Waters era polemizar, o roqueiro deve estar satisfeito. O duro é que ele parecia não ter a menor ideia do estado das coisas no Brasil neste quase psicodélico 2018.

E olha que estamos falando apenas do primeiro show de uma turnê que ainda passará por Brasília, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba. Um giro que mais parece a agenda de um candidato à presidência da República, diga-se. Só nos resta saber quantos fãs o músico perderá até lá. Será que precisava de tudo isso, mr. Waters?