O tradicional Hôtel de Ville, em sua arquitetura renascentista, é a sede de toda a administração municipal de Paris, incluindo a prefeitura e a câmara de vereadores. Já atravessa o seu sétimo século de existência (é de 1347 e teve uma ampla restauração em 1872), com a glória de ter diante de si a Place de l’Hôtel de Ville, palco de marcos históricos como, por exemplo, a Revolução Francesa e a libertação do país da ocupação nazista. Na semana passada, porém, ela, a praça, e ele, o deslumbrante edifício do hotel, verdadeiro monumento da humanidade, decaíram involuntariamente para a condição de tablado de inverdades proferidas pelo ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Responde por isso a prefeita parisiense, Anne Hidalgo: uma socialista, é claro, que convidou Lula a receber o título de cidadão honorário da cidade – honraria que ela lhe concedeu quando Lula ainda cumpria pena por corrupção na Superintência da Polícia Federal em Curitiba.

Acompanhado pela ex-presidente Dilma Rousseff, pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e por demais lideranças de movimentos radicais de esquerda, Lula recebeu a homenagem no salão nobre do Hôtel de Ville — foi ovacionado, até porque o local se lotara de correligionários de Anne. Lula desfiou, então, o rosário de sempre: de que se trata de um perseguido político, de que no Brasil teve a sua defesa cerceada, de que se “montou uma quadrilha” na Justiça para prendê-lo. Disse, ainda, que poderia ter fugido ou entrado em qualquer embaixada para escapar do encarceramento, mas que preferiu entregar-se à PF para demonstrar a sua inocência. Tudo bravata. Antes de ser preso, por inédita condescendência da nossa Justiça, Lula comandou um ato político na cidade paulista de São Bernardo do Campo, bebeu, berrou e só então foi levado pelos policiais. Sobre nada disso ele falou, apresentou-se como o pai dos pobres brasileiros e defensor dos direitos humanos – dois dos motivos com os quais Anne Hidalgo justificou a homenagem. Como ela poderia dizer que a sua verdadeira intenção era fazer do ex-presidiário um de seus cabos eleitorais?

A MISTURA DO NADA Dilma, Coquerel, Lula, Mélenchon e Haddad: falas radicais e ideias deslocadas da contemporaneidade do mundo (Crédito:Divulgação)

A prefeita não disse, mas o fez. Em seu rodopio parisiense, Lula compareceu na noite da própria segunda-feira 2 a outro evento, e aí a coisa começou a complicar. O tom austero, do Hôtel de Ville, agora tornou-se um tom panfletário e de comício de apoio à companheira francesa socialista, que está a menos de duas semanas de tentar a sua reeleição. Vereadoras como Marie-Lavre Harel (integra o mesmo partido do presidente Emmanuel Macron) e Olga Johnson (membro do movimento radical da esquerda) cobraram Anne: “Essa mistura de homenagem e comício nos leva a duvidar do bom uso dos recursos financeiros da cidade”. Falando nisso, também a nós vem similar questionamento: a verba à qual ex-presidentes têm direito no Brasil é dinheiro público, e difícil crer que ela não esteja ajudando na viagem. Ou tudo correu por conta do PT e de Anne? Os franceses se indignaram, assim, com o fato de o evento do Hôtel de Ville ter servido de porta de entrada para discursos de campanha no Théâtre du Gymnase Marie Bell. E não é para menos: no Brasil, Lula é o cidadão que mais teve irrestrito direito à ampla defesa e amparo no devido processo legal, mas, por onde rodopiou em Paris, insistiu em sua inôcencia, apesar de ser dono de sentença criminal condenatória em duplo grau de jurisdição.

A absurda defesa de Morales

Nas andanças, de ex-presidente para ex-presidente, Lula encontrou-se François Hollande. Mais: esteve com o deputado Eric Coquerel e o líder do grupo França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, que o visitou na cadeia em Curitiba. Falou de sua falsa inocência (óbvio) e sobre problemas ambientais. No domingo 1, vinte e quatro horas antes de receber o título, o jornal suíço “Le Temps” publicou uma entrevista com o ex-presidente sob a manchete “A Genève, Lula vient dire ses vérités”. Entre outros absurdos, Lula afirmou à publicação que o ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, caiu por força das elites – pura demagocia, Morales caiu porque fraudava uma eleição atrás da outra para manter-se no poder, e quem o tirou foi o povo. O ex-presidente deve chegar a Genebra na sexta-feira 6, onde se reunirá com lideranças do Conselho Mundial de Igrejas – e, obviamente, dirá que é inocente. Depois viajará à Alemanha. Se somente a sua ida a Paris levantou questionamentos sobre a torração de dinheiro público, de lá e daqui, tornam-se ainda mais fortes as dúvidas e suspeitas de que toda essa festa está sendo patrocinada por nós. Em tempo: Lula está difamando a imagem da nossa Justiça no exterior. Quem lhe deu esse direito?