Era início dos anos 1980, quando Roberto Cordovani passeava por uma praia na Corunha, na Espanha, remoendo uma crise existencial e profissional motivada pela dúvida sobre voltar ou não para o Brasil e a desistência de adaptar para os palcos o romance Memórias de Adriano, da francesa Marguerite Yourcenar.

Observando o mar, avistou um rapaz correndo e, numa troca de olhares, conseguiu um ombro para abrir o coração. Tocado, o espanhol foi até seu apartamento e voltou com um presente: um casquete preto, pequeno chapéu sem abas. Incomum, o presente ganhou significado quando, tempos depois, ainda na Corunha e realizando pesquisas sobre mitos e comportamento, o ator se deparou com a foto da atriz Greta Garbo usando um casquete parecido com o que ganhara.

“Entrei um dia casualmente numa livraria à procura de material para estudar e uma mulher deixou cair uma cesta com um livro chamado O Mito, com uma foto da Garbo vestida de Mata Hari na capa. Ali tive certeza de que eu seria Garbo.” Uma coisa foi levando a outra e assim surgiu Olhares de Perfil – O Mito Greta Garbo, que estreou em 1987 na Espanha e ganhou os palcos da Inglaterra, Estados Unidos, Portugal e Brasil, quando foi encenado em 2001 no TBC.

Com mais de 2 mil apresentações em 9 países e 320 cidades, a peça retorna à capital a partir deste domingo, 1º, no Teatro Commune, até 17 de outubro, com uma trajetória que garantiu a Cordovani uma série de prêmios internacionais e elogios do sobrinho da própria Greta Garbo, Peter Gustafsson, que assistiu ao espetáculo (falado em português) durante temporada em Londres.

Embora a estrela da clássica Hollywood seja a principal referenciada na obra escrita em parceria com Alejandra Guibert, Olhares de Perfil está longe de ser uma biografia. “Não é sobre ela, não é baseado nela, eu nem sou um fã de Garbo. Essa peça, na verdade, é sobre como construímos e desconstruímos mitos, como mentimos para nós mesmos e nos impedimos de viver a vida que queremos viver”, explica.

Em cena, Cordovani é Gustafsson, um performer que se apresenta em uma boate imitando Greta Garbo. A semelhança é tão forte que acende dúvidas sobre aquela figura e se não se trata da própria atriz. O período em que o espetáculo se passa também ajuda a embaralhar percepções sobre quem é a personagem.

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Localizado em 1941, Olhares de Perfil retrata também o desaparecimento da atriz que, na época, foi afastada dos grandes estúdios por tentar romper com a imagem de femme fatale imposta pelos executivos da Metro-Goldwyn-Mayer e por se aliar às lutas antinazismo.

“O espetáculo é atemporal, é um texto que pode ser montado a qualquer momento, mas tem esse lado de retratar o sumiço da Garbo que, na época, estava na Galícia, trabalhando na questão de passaportes para fugitivos políticos. Quando descobri esse lado, encontrei uma vertente sobre o outro lado do mito, tratando das pessoas que têm a mídia e o poder nas mãos e estão trabalhando debaixo dos panos para fortalecer muita gente.”

Em cena, ao lado de Cordovani, Ruben Gabira e Alan Ferreira dão vida às figuras que tentam desmascarar a atriz que, em tese, se passa por um homem, e mergulham com o diretor naquele que acreditam ser o maior desafio: atrair um público mais jovem que talvez não tenha intimidade com figuras como a de Garbo.

“Embora muitos sequer tenham ouvido falar de Garbo, como já conheci brasileiros que não sabiam quem foi Elis Regina, eu creio que o espetáculo fale de temas contemporâneos, porque o jovem sempre existiu, independente do período. O que chamava a atenção era a necessidade de aflorar a sexualidade, e isso continua. Temos mais movimentos, a mídia popular está mais aberta, então a peça é um prato cheio para a quebra de barreiras de você assumir quem é você.”

Para Ferreira, a obra segue contemporânea ao retratar questões tanto comportamentais quanto políticas. “Nós temos essa multiversatilidade e estamos passando por um período de urgência, onde o que chama a atenção são peças com provocações políticas, e trazemos isso absurdamente forte. Somos cultivados a entrar nessa vida de pressa, informação imediata, sem profundidade, e a peça apresenta essa quantidade de camadas de como estamos nos relacionando com o outro, o quão somos obrigados a criar jogos, é esse o barato da arte, nos mostrar o espelho.”

Ruben Gabira vai além. “Estamos vivendo uma terceira guerra mundial, mas desta vez invisível. E podemos ver que a questão política não mudou muito. Garbo lutava por uma libertação e, de certa forma, é o que fazemos hoje, quando os extremos ainda criam diferenças e injustiças sociais, tal qual nos tempos dela.”

Olhares de Perfil cumpre temporada presencial com 60% da capacidade da casa. Cordovani crê que o espetáculo só pode ser compreendido com o ritual completo. “Não dá para você montar uma peça dessas para assistirem num quadradinho onde não se tem dimensão de nada. Adiamos a estreia quatro vezes para ter a chance de ter o público. É a era do imediatismo, e as pessoas são levadas, com dificuldade de olhar para trás, achando que o passado é velho, antigo, e, ao contrário, ele é vivo, pulsante.”

“A peça passa que devemos nos bastar sem depender do outro, e isso é muito importante hoje, quando as pessoas sofrem de depressão e ansiedade ao se verem sozinhas, pela primeira vez se viram sem a muvuca, sem o sextou. Ela te dá um belo jantar e, na sobremesa, anuncia que a comida estava envenenada. Essa hipocrisia da hiperconectividade de hoje também é minha revolta como autor.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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