“Rio Branco foi um realista”, diz seu biógrafo

Alexia Fidalgo
O escritor Luis Claudio Villafañe Foto: Alexia Fidalgo

[posts-relacionados]O diplomata carioca Luís Cláudio Villafañe G. Santos, de 58 anos,  pesquisou ao longo de mais de dez anos para concluir o livro “Juca Paranhos, O Barão do Rio Branco” (Companhia das Letras). O volume tem mais de 500 páginas, mas é o contrário da típica biografia monumental, em que o biografado surge como vulto da pátria. Para Santos, trata-se de evitar o heroísmo e assim fazer surgir o perfil realista de José Maria da Silva Paranhos Filho (1845-1912), o barão do Rio Branco. Santos traça um perfil nada heroico do patrono da diplomacia brasileira. Revela segredos de alcova, caça e conflitos internacionais. Mas também apresenta uma interpretação do papel e do legado do Barão.

Ainda é possível dizer algo de novo ou encontrar novidades em uma das personagens mais biografadas do Brasil como o Barão do Rio Branco?

Claro que sim. Para começar, as boas biografias do Rio Branco são antigas – a do Álvaro Lins é de 1945 e a do Viana Filho de 1959. De lá para cá, há alguns ensaios de qualidade, mas nenhuma biografia propriamente dita. Além de documentos revelados na pesquisa, o livro faz um resgate de histórias que caíram no esquecimento e reinterpreta os diversos episódios à luz das discussões historiográficas atuais. E, também, a própria abordagem biográfica mudou muito, já não cabe a construção de um herói da nacionalidade, com uma trajetória linear, sem contradições, erros, inseguranças e incertezas. O Rio Branco real acerta, erra, se reinventa, trai e é traído, etc.

Que fatos novos você revela no livro?

Em relação às biografias existentes há uma coleção de novidades. Algumas estavam enterradas em livros antigos ou documentos esquecidos, outras conhecidas apenas pelos raros estudiosos e algumas que identifiquei ao longo da pesquisa. Dou exemplos. Eu resgatei um tratado secreto que o Rio Branco assinou com o Equador para uma ação militar conjunta em uma eventual guerra contra o Peru, algo que nenhum biógrafo anterior jamais mencionou. Eu publiquei o texto desse acordo em uma revista especializada em 2017, mas o tema era desconhecido na historiografia brasileira. Desencavei no Arquivo Histórico do Itamaraty um minucioso estudo que não chegou a ser publicado de um bibliotecário do Ministério sobre as anotações que o Barão fazia nos livros de sua vasta biblioteca, com muitas coisas interessantes. Resgatei histórias esquecidas como a do genro-espião, o quase assassinato de um colega de faculdade pelo jovem Juca, o uso de lobistas e mesmo de informantes infiltrados junto aos juízes nas arbitragens sobre os territórios de Palmas e do Amapá, entre outras.

Você corrobora a interpretação tradicional que atribui a Rio Branco um papel fundamental tanto no estabelecimento das fronteiras do Brasil como da definição do papel do Brasil na geopolítica americana. Há outros aspectos a acrescentar nessa interpretação?

O papel do Rio Branco na definição das fronteiras é inegável e transcendente. Trata-se, sem dúvida, de seu maior legado. Mas, mesmo essa história está mal contada. No livro eu aprofundo essa questão das negociações de limites, cuja interpretação está até hoje muito baseada na narrativa que o próprio Rio Branco criou. Por exemplo, a negociação com o Peru, onde se poderia ter perdido todo o Acre, mesmo depois de pago – em dinheiro e territórios – para a Bolívia, é sempre apresentada como uma coisa quase burocrática, quando demorou mais de cinco anos e quase resultou em uma guerra que teria sido muito complicada. É o próprio Rio Branco que dá origem a essa interpretação porque ficava melhor para ele, conforme explico no livro.

O Rio Branco viveu mais de vinte anos na Europa e um par de anos nos Estados Unidos. Ele compartia plenamente a visão das elites desses países em relação ao sistema internacional. O que almejou fazer na América foi, de alguma maneira, reproduzir o arranjo europeu, criar uma espécie de “concerto americano” em que os Estados Unidos, o Brasil, a Argentina, o Chile e o México se entenderiam para manter o continente em paz e longe das intervenções europeias.

Muitas vezes, Rio Branco parece ter agido de forma maquiavélica para beneficiar um país aliado ou uma situação favorável ao Brasil?

Em termos de relações internacionais, Rio Branco foi o que hoje chamaríamos de um realista. Ele entendia que o poder é o elemento mais importante nas relações entre os países e agiu de acordo com esse entendimento. No livro, eu dou elementos para que o leitor ou leitora faça seu próprio julgamento em cada episódio. Por exemplo, a questão da retificação das fronteiras com o Uruguai, em que o Brasil cedeu, sem compensação, o condomínio da Lagoa Mirim e do rio Jaguarão teve também um elemento de cálculo político para constranger a Argentina; mas definir em que medida pesou mais a vontade de remediar uma situação injusta ou se foi por causa da rivalidade com a Argentina fica por conta de quem interpreta a questão.

Você adentra um terreno desafiador que coloca em nexo a diplomacia e a moldagem de conceitos de identidade nacional. De que forma essa relação se altera com as mudanças de regime e de modelo de Estado e Nação no Brasil do Império à Nova República?

Eu tratei especificamente dessa questão da ligação entre política externa e identidade nacional em um livro anterior, que, pelo papel do Rio Branco nesse processo, acabou se chamando O Dia em que Adiaram o Carnaval (UNESP, 2010). Por ter sido uma monarquia por quase sete décadas, com a conservação de muito do imaginário, das relações socias e das formas de legitimação do Antigo Regime – em contraste com os Estados Unidos e com os países vizinhos – nas bases como se entende o fenômeno hoje em dia, o nacionalismo foi tardio no Brasil e, assim, ainda que tendo atuado quase um século depois da independência, pode-se dizer que o Rio Branco tem um papel relevante como formador da nacionalidade. Mas isso eu exploro mais a fundo nesse outro livro de 2010.

Nesse processo, Rio Branco ofereceu um modelo de nacionalidade? Quem entre os seus sucessores exerceram o mesmo papel, sem esquecer o antecessor Joaquim Nabuco?

O papel do Rio Branco como formador da nacionalidade está muito ligado a seu desempenho, político e discursivo, na consolidação das fronteiras. A questão do território – que precederia a nação, um legado da natureza que a colonização portuguesa nos teria transmitido – está na base da construção da ideia de nacionalidade no Brasil. O Rio Branco resgatou e atualizou esse mito fundador e, assim, destaca-se entre seus contemporâneos nesse processo de fortalecimento do sentimento nacional. A política externa tem um papel importante na construção da nacionalidade, pois afinal é a política pública que lida especificamente com o “outro” e a alteridade é fundamental na construção da identidade.

Rio Branco defendia a aliança íntima com os Estados Unidos. A diplomacia brasileira posterior buscou se afastar dessa intimidade? Houve uma espécie de angústia da influência em relação a essa convicção no Itamaraty ao longo do século XX?

Essa interpretação é um mito que o livro desafia. A suposta prescrição invariável de Rio Branco em favor de um alinhamento com os Estados Unidos não se sustenta. Antes de mais nada, a ideia de priorizar as relações com os Estados Unidos precede Rio Branco; foi uma política perseguida de forma estridente já imediatamente depois da proclamação da república e, inclusive, vinha do Manifesto Republicano de 1870. De fato, em determinados momentos, Rio Branco entendeu que seria importante ao menos aparentar uma sintonia com os Estados Unidos, principalmente como proteção contra ingerências das potências europeias. Essa política, que teve seu ponto máximo na III Conferência Pan-americana, realizada no Rio de Janeiro em 1906, desandou a partir da Conferência da Paz na Haia em 1907 e ao fim do período de Rio Branco as relações com os Estados Unidos estavam em seu ponto mais baixo em muitas décadas. Foram os sucessores do Barão que, para legitimar suas escolhas, passaram a atribuir ao Rio Branco essa ideia de uma aliança incondicional com os Estados Unidos. Essa visão durou ao longo de grande parte do século XX e se reforçou com a tese da “aliança não escrita”, inventada na década de 1960 muito mais para legitimar a política daquela década, depois do golpe de 1964, do que como descrição válida das relações entre os dois países no início do século XX.

Você poderia descrever em poucas linhas a pessoa de Juca Paranhos, como personalidade, gostos, aspecto físico e psicológico? Ele não parecia ser um grande intelectual, apesar de inteligente.

Uma das coisas que diferencia o livro das biografias anteriores é, justamente, mostrar a evolução do personagem ao longo de sua vida. Minha análise atende a prescrição de Pierre Bourdieu de desmascarar o que ele chamou de “ilusão biográfica”: mostrar os biografados como personagens planos, cujas principais características sociais, pessoais e de caráter permanecem praticamente inalteradas durante toda sua trajetória. Ao contrário, eu procuro mostrar as transformações do Rio Branco ao longo de sua vida, suas contradições, inseguranças, recuos e momentos em que ele se reinventou.

Quanto à questão do legado intelectual, o Rio Branco não deixou uma obra “acadêmica” de relevo; ficaram muitos textos dispersos, de diversos tipos, que inclusive eventualmente têm contradições entre si. Foram, na maior parte dos casos, escritos de circunstância. Isso não deixou de ser uma vantagem para os que, desde então, passaram a atribuir ao Barão a paternidade de suas políticas como forma de legitimá-las. Mas, vale dizer, mesmo sem ter escrito obras de maior fôlego, o Rio Branco foi um grande erudito nas áreas de história e geografia do Brasil, conhecimento que ele aproveitou muito bem para sustentar sua atuação diplomática e política.

Você busca traçar um perfil menos monumental desse vulto pátrio, símbolo da hegemonia (rural) oligárquica o Império que não hesita em defender e consolidar a República Velha. No que ele fraquejou, errou e acertou? 

O livro, em suas quinhentas e tantas páginas, está aí para responder a essa pergunta. Não me furto em mostrar as hesitações, erros de avaliação e contradições; e também os grandes acertos e vitórias, bem como as polêmicas que enfrentou. A trajetória do Rio Branco é uma janela extraordinária para acompanhar as transformações que o Brasil e o mundo passaram durante as várias décadas de sua atuação política, do fim do Império ao início da República, e não somente na política externa. O livro explora também a relação entre a política interna e a política externa e a atuação do Rio Branco na política interna; desfaz o mito de sua suposta autonomia na condução da política externa. Então, como hoje, a política externa reflete a situação interna e os debates políticos e mesmo partidários.

 Que lição Paranhos legou ao Brasil, e que pode ainda hoje pode ser considerada fundamental para a instauração de um Estado e uma Nação brasileiras? O “concerto americano” esboça de alguma forma os tratados atuais entre os países do continente?

A ideia de um “concerto americano” que ele tinha em mente é muito distinta do que se pode propor hoje. Sua visão das relações internacionais, na linha dos seus contemporâneos, era essencialmente oligárquica. Vale dizer que é nesse período em que a noção de uma hierarquia entre os países como uma coisa natural e legítima começa a ser posta em questão. A ideia da igualdade das nações teve na Conferência da Haia de 1907 um marco importante. É um episódio que eu exploro no livro e aí se vê que, ao contrário do Rui Barbosa, o Barão aceitava com muito mais naturalidade a preponderância das grandes potências. Esse exercício de buscar na atuação e nas ideias do Rio Branco antecedentes ou justificativas para políticas atuais foi usado e abusado pelos seus sucessores no Itamaraty, mas não resiste a uma análise mais detida.

Num exercício de especulação fantasiosa, como Rio Branco reagiria ao papel atual do Itamaraty?

Não cabe muito essa especulação. A agenda das relações internacionais hoje é muito diferente. Qual seria a posição do Rio Branco sobre mudança climática, exploração dos fundos marinhos? Mesmo temas que já existiam – comércio, direitos autorais, transportes, etc. – são profundamente diferentes hoje.

Quais foram as principais surpresas e dificuldades durante esses (talvez seis) anos de pesquisas em arquivos?

São mais de dez anos de pesquisas. Já para o livro sobre o papel da política externa na construção da nacionalidade, publicado em 2010, estava trabalhando com o Rio Branco. As investigações para aquele livro vêm, naturalmente, de antes e assim acho que passo já dos dez anos pesquisando, direta ou indiretamente, sobre o Rio Branco. Investigar um tema é sempre descobrir coisas novas que, muitas vezes, mudam a interpretação que se tinha. O resultado nunca é como se imaginou que seria no início, o que é o melhor sinal de que a pesquisa valeu a pena. Não tive nenhuma dificuldade específica de acesso à documentação e as surpresas foram surgindo naturalmente pelo caminho.

Você poderia estabelecer uma comparação entre sua interpretação de Rio Branco e as de outros biógrafos, como Luís Viana Filho e outros que aparentemente praticaram a biografia-exaltação?

As biografias falam dos biografados e de suas épocas, mas também refletem o momento em que foram escritas. Um dos grandes desafios do biógrafo é dar elementos para que os leitores e as leitoras possam se relacionar empaticamente com o biografado. No caso, foi necessário um esforço para situar a visão de mundo, as inseguranças, as expectativas, os dilemas e a teia de relações sociais de um personagem que nasceu em 1845 e se socializou e atuou em um contexto bastante diferente do nosso, um mundo que sofreu transformações importantes durante sua existência. Esse esforço tem de ser atualizado a cada releitura. Explicar o Rio Branco em 1945, como fez o Álvaro Lins, é muito diferente do desafio enfrentado pelo Viana Filho, em 1959, e da tarefa de mostrar esse personagem, complexo e muitas vezes contraditório, para o público de hoje.