Nova York, 1776. Aos 21 anos, um imigrante do Caribe lidera uma divisão da artilharia ao longo da avenida mais larga de Manhattan, a Broadway. Os Estados Unidos da América lutam contra os ingleses por sua independência. Se adiantarmos a cena para Nova York em 2015, mais de dois séculos depois, veremos outro imigrante do Caribe, ator, cantor e compositor, liderando um elenco multirracial em um dos espetáculos mais revolucionários da Broadway. Aqui, a história não se repete como farsa, como diz o ditado – mas como musical.

O primeiro personagem, o herói militar, é Alexander Hamilton, um dos “pais fundadores” da nação americana. O segundo é Lin-Manuel Miranda, o gênio criador de “Hamilton”, cuja versão filmada está agora disponível no streaming da Disney+. O porto-riquenho teve a ideia para o show em 2009, após ler a biografia de Ron Chernow, edição que chega ao Brasil pela editora Intrínseca. Apaixonou-se pelo personagem e ficou surpreso com o protagonismo que ele teve na criação dos EUA – geralmente relegado a segundo plano, principalmente na comparação com seus companheiros que se tornaram presidentes, como George Washington, John Adams e Thomas Jefferson. Primeiro secretário do Tesouro e arquiteto do governo recém-criado, Hamilton idealizou todo o sistema bancário do país, base para a expansão do próprio capitalismo. Criou o banco central, a alfândega e o conceito geral do sistema tributário dos EUA, parte dele em vigor até hoje.

Sua vida particular não foi menos interessante: filho de uma prostituta e um aventureiro, ficou órfão aos doze anos. Adotado por uma família americana, tornou-se jornalista, voluntário do exército e braço-direito de George Washington, escrevendo cartas e discursos. Ambicioso e oportunista, casou-se com Eliza Schuyler, de família rica, apesar de ser apaixonado mesmo por sua irmã, Angelica. Com a revelação pela imprensa de um caso com outra amante, protagonizou o primeiro escândalo sexual da política americana – o que lhe custou a candidatura à presidência. Seu filho mais velho, Philip, morreu em um duelo tentando defender a honra do pai. O próprio Hamilton morreu em um duelo com Aaron Burr, seu antigo aliado.

A ideia genial de Lin-Manuel Miranda não foi apenas transformar essa história em um musical. Inspirado pelo conceito original da fundação dos EUA, justiça e liberdade, recrutou um elenco de atores negros e elaborou o espetáculo inteiro sem diálogos, apenas com rimas em ritmo de rap. Batizada inicialmente de “Hamilton Mixtape”, a versão final estreou em 2015 no Public Theater, um palco “off-Broadway”, como são chamados os teatros menores e mais alternativos em relação aos que abrigam superproduções como “O Fantasma da Ópera” e “Cats”. Em poucos meses, as filas ficaram tão longas que foram obrigados a se mudar: da sala de 200 lugares, passaram a receber todas as noites uma plateia de 1.300 pessoas, lotação máxima do lendário teatro Richard Rogers.

Teatro filmado

Nesse palco, em 2016, foi filmada a versão disponível hoje no Disney+. Apesar de não ter, obviamente, a força da apresentação ao vivo, o musical captura com bastante fidelidade a mágica dessa obra-prima audiovisual. O segredo é a direção de Thomas Kail e o estilo da edição, com poucos cortes e cenas feitas como se simulassem a visão de um teatro, quase sempre na altura dos olhos do público. Além da incrível parte musical, chama a atenção a coreografia, os figurinos e a iluminação primorosa que realça o trabalho do premiado elenco formado por Leslie Odom Jr., Phillipa Soo, Daveed Diggs, Christopher Jackson e Renée Elise Goldsberry, além do próprio Lin-Manuel.

A lista de espera para os ingressos da peça na Broadway podia chegar a um ano e custar até US$ 5 mil

O sucesso de “Hamilton” criou uma demanda nunca vista na Broadway, nem em nenhum outro teatro do mundo. Pelas vias tradicionais, antes da pandemia, a lista de espera por um ingresso podia durar até um ano e custar até US$ 1.000 – mais de R$ 5 mil. Quem não queria esperar tinha que apelar para os cambistas e pagar cerca de US$ 5 mil, ou esperar três dias na fila, dormindo na calçada. A chegada de “Hamilton” ao streaming democratizou tudo isso: no Brasil, conquistou até jovens fãs como Isabel Koga, de 14 anos, que já decorou boa parte de suas letras quilométricas. “Gostei das músicas e só depois descobri que eram de um musical”, diz a adolescente. “Sei que assistir na tela não é a mesma coisa que ao vivo, mas ficou bem emocionante. Achei legal ter atores negros, porque eles também fazem parte da história dos EUA.” Em tempos tão caóticos, os líderes políticos em Washington deveriam reaprender os ideias de liberdade e justiça que inspiraram a independência do país – e o nascimento de um personagem como Hamilton.

Lançamento

“Alexander Hamilton” Ron Chernow
Ed. Intrínseca
Preço: R$ 99 | 896 págs.