Oitenta anos após a primeira exposição individual da escultora mineira Maria Martins (1900-1973), realizada em 1941, na Corcoran Gallery de Washington (EUA), a artista ganha uma retrospectiva com 45 obras no Museu de Arte de São Paulo (Masp), que será aberta nesta sexta-feira, 27. A mostra, realização conjunta do museu com a Casa Roberto Marinho do Rio de Janeiro, reúne algumas das mais conhecidas esculturas da artista, que está para a arte tridimensional assim como a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) está para a bidimensional. Em ambos os casos, foram grandes inovadoras que pesquisaram os mitos na cultura brasileira, fazendo, cada uma a seu modo, interpretações originais dessa ressonância mitológica na modernidade.

Frequentemente alinhada aos surrealistas – vale lembrar que o fundador do movimento, André Breton, escreveu um texto para sua exposição na Julian Lévy Gallery de Nova York (1947) -, Maria Martins não gostava de ser classificada. A curadora da exposição, Isabella Rjeille, lembra que, numa entrevista à escritora Clarice Lispector (em 1968, para a extinta revista Manchete), a escultora, respondendo se era figurativa ou abstrata, foi taxativa: “Sou contra ‘ismos’”. E concluiu: “Dizem que sou surrealista”. E era mesmo. Pelo menos comungava de alguns mandamentos do Manifesto Surrealista (1924) de seu amigo Breton, que contestava a supremacia do entendimento racional, propondo uma nova estética baseada na visão lúdica e nos impulsos do inconsciente.

O Impossível (década de 1940), sua escultura mais conhecida, pode ser facilmente enquadrada na escola surrealista. Ali está a mais terrível representação do embate entre homem e natureza. Um casal metamorfoseado, híbrido de humano com bicho, parece dramaticamente condenado ao isolamento e ao silêncio. Com garras afiadas que saem dos rostos e impedem qualquer espécie de contato e conciliação, o casal se desfaz de sua humanidade, assumindo seu aspecto monstruoso – surrealista, digamos. O poeta, também mineiro, Murilo Mendes (1901-1975) achava pertinente que assim fosse, justificando que vivemos num país surrealista em que “as fronteiras da lógica e da psicologia terminam”.

Mendes não gostava de tudo que Maria Martins produzia, mas louvava sua coragem, sua “força de ataque”. Como pontos referentes de sua obra apontava as formas “livres e agressivas” da escultura da África e Oceania. Faltou acrescentar que Maria, a exemplo de Giacometti, deve ter visto no departamento de Antiguidades e Arqueologia do Louvre a escultura dos antigos etruscos – e o confronto com esse mundo “primitivo” fez com que ambos descobrissem que uma mesma linha iconográfica ancestral o ligava ao contemporâneo, como observou Chiara Gatti. O sentido do sagrado, por exemplo. Gide falava que Giacometti (1901-1966) tinha o desejo atávico “de remeter suas figuras, como defuntos, para a eternidade”, a exemplo dos etruscos (e o escultor suíço teve mesmo a ideia de enterrar uma de suas esculturas).

Maria Martins também tem figuras esguias e misteriosas como as de Giacometti, mas sua aproximação com os etruscos vai por outro caminho, o da sexualidade exposta das figuras longilíneas do período helênico – e o ventre cortado da figura feminina de O Impossível pode ter sido replicado de uma pequena escultura do museu etrusco de Volterra.

A exposição Maria Martins: Desejo Imaginante foi dividida pela curadora em cinco núcleos – Imaginários Amazônicos, Como uma Liana, Por Muito Tempo Acreditei ter Sonhado que era Livre, Duplos Impossíveis e Mitologias Pessoais. Em cada um deles há uma obra icônica da trajetória de Maria Martins, cobrindo um período que vai dos anos 1940 até o final dos anos 1950, quando trocou a escultura pela escrita, publicando livros que vão de uma reflexão sobre a Ásia (em 1958) a um ensaio sobre Nietzsche (em 1965).

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Por ser esposa de um diplomata, ela viajou muito, passando a maior parte do tempo em Paris ou Nova York. Em 1950, ao voltar ao Brasil, ajudou na organização da primeira Bienal de São Paulo e participou de três em seguida (ganhando o prêmio de melhor escultura em 1953). A curadora observa que, mesmo tendo desenvolvido seu trabalho no exterior, por força das viagens, “não virou as costas para as questões levantadas pelo movimento modernista brasileiro”, com especial ênfase nos mitos indígenas.

Os primeiros trabalhos em bronze da artista foram inspirados pelas mitologias amazônicas, como Amazônia (1942) e Cobra Grande (1943). Maria, como ela simplesmente assinava as obras, chegou mesmo a ser reduzida pela crítica estrangeira a uma ‘escultora dos trópicos’, lembra a curadora, “por buscar nessas mitologias amazônicas e na cultura afro-brasileira referências para as suas primeiras obras”. E aponta, logo no primeiro núcleo, obras que revivem a tendência modernista de reinterpretar esses mitos num contexto contemporâneo, como a escultura Uirapuru (1945), baseada na lenda indígena.

O segundo núcleo revela a tentativa de criar uma mitologia pessoal em obras como Canção Perdida (1950). No terceiro, já dominando o bronze, ela se arrisca no tema da liberdade individual, em obras como Prometeu, de 1949 (há duas versões esculpidas do mito grego que ousou roubar o fogo de Héstia, sendo punido por Zeus) e However! (uma figura feminina enrolada numa cobra). O quarto núcleo reúne as obras de maior apelo, como duas das versões de O Impossível (anos 1940) e Hasard Hagard (1947), com a pintura ao lado que deu origem à escultura. Ainda nesse núcleo se destacam as obras de depuração formal que remetem a Brancusi, como A Tue-Tête (1950) ou a Henry Moore, Très Avide (1949), feita no mesmo ano em que o escultor inglês assinou sua obra Três Pontas. Pode-se imaginar como teria evoluído a escultura de Maria Martins se ela não a tivesse abandonado. A grande feminina no quinto e último núcleo, mais que uma resposta, é um enigma: Maria se transformou na própria escultura, fundindo-se a seus mitos.

Serviço

MARIA MARTINS: DESEJO IMAGINANTE

MASP. AVENIDA PAULISTA, 1.578, TEL. 3149-5959. 3ª, 10H/18; 4ª/6ª, 12H/18H;

SÁB. E DOM., 10H/18H.

INGRESSOS: R$ 45 (MEIA-ENTRADA, R$ 22) ABRE HOJE. ATÉ 30/1/22

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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