IDEOLOGIA Ministério da Saúde faz audiência pública para criminalizar o aborto (Crédito:Divulgação)

O Ministério da Saúde está criando um clima de terror para aumentar a insegurança jurídica entre os médicos que praticam abortos legais no Brasil e criar ainda mais confusão na cabeça de meninas menores de 14 anos violentadas e desamparadas. Numa audiência pública realizada em Brasília, terça-feira, 28, entrou em discussão a cartilha “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, lançada pelo governo no início do mês e que proclama, entre outras barbaridades, que “não existe aborto legal” por aqui. Trata-se de um esforço concentrado para ideologizar a questão da interrupção da gravidez e perturbar o trabalho de profissionais que executam o procedimento em hospitais públicos com rigor técnico e princípios éticos. Na cartilha, com 70 páginas, o governo mente de forma descarada para tentar criminalizar a prática em todas as hipóteses. Com um discurso desonesto, ignora o artigo 128 do Código Penal de 1940, da época de Getúlio Vargas, que possibilitou a interrupção legal da gravidez em caso de estupro e de risco de vida da mãe. A audiência foi uma demonstração de que o governo está se lixando para as mulheres, em especial para as mais pobres, e só cultua ideias negacionistas, tentando converter o aborto em assunto de polícia, mas não de saúde pública.

1,8 mil: Total de abortos legais feitos em 2021 por motivo de estupro, risco de morte da mãe e anencefalia do feto

O governo Bolsonaro aproveita a escalada conservadora puxada pelos Estados Unidos para restringir direitos civis que pareciam assegurados e deixando de atender a população mais vulnerável. Lá, a Suprema Corte derrubou um entendimento de 50 anos de que a Constituição garantia o direito às mulheres de interromperem a gravidez. Por conta disso, milhões de americanas perderam imediatamente a assistência para a realização do procedimento de forma segura, o que afeta principalmente mulheres jovens, negras e de baixa renda. A decisão causou enorme revolta, demolindo um marco do constitucionalismo feminista e uma das principais conquistas do movimento das mulheres ao longo de sua história. A partir de agora, ficará com os estados a responsabilidade pela legalização ou proibição do aborto. Simbolicamente, a medida mostra que o mundo está regredindo na questão dos direitos civis.

OBSCURANTISMO Espanhóis protestam contra ampliação da lei do aborto (Crédito:JAVIER SORIANO)

A mudança nas regras nos Estados Unidos está associada à pressão permanente de fundamentalistas cristãos contra a prática. E como acontece no Brasil, as principais armas usadas para convencer as pessoas de ideias falsas e anticientíficas são a desinformação e o medo. Como fez com a cloroquina, que tentou impor de maneira enganosa no tratamento da Covid-19, o Ministério da Saúde coloca agora uma cartilha moralista em circulação com o claro objetivo de tumultuar a bom funcionamento do serviço público prestado para milhares de jovens carentes e aumentar a presença da polícia dentro dos hospitais. Na página 14 da cartilha do governo está dito, por exemplo, que “todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido”. Além do risco de vida da gestante e da gravidez que decorre de estupro, a terceira possibilidade de realização de aborto legal no País é em caso de anencefalia do feto, prevista em uma decisão do STF de 2012.

DESINFORMAÇÃO Robinson Dias vê moralismo na cartilha (Crédito:Divulgação)

Para o médico Robinson Dias, presidente da Comissão de Violência Sexual e Aborto Legal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o governo está passando uma informação enviezada para a população com referências incompletas e contaminadas por avaliações morais. “Entendemos que nosso principal papel é oferecer informação correta e serviços de atendimento para a população mais vulnerável”, diz. “E isso está sendo abandonado.” Organizações engajadas na luta pelos direitos das mulheres não tiveram o credenciamento aceitos na audiência pública. A Febrasgo, que esteve presente, divulgou uma nota em que repudia a posição do Ministério sobre o aborto e acusa o documento de interpretar de maneira falaciosa dados epidemiológicos e o ordenamento jurídico. Critica especialmente “a orientação de denúncia compulsória à autoridade policial de toda interrupção de gestação decorrente de estupro, abrindo o caminho para a criminalização da prática“. A nota da Febrasgo diz ainda que a cartilha contém erros conceituais sobre o termo aborto e incentivo a graves violações éticas. Ao contrário do que acontecia até 2018, a Febrasgo não participou da produção da cartilha, que foi elaborada pelo secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério, Raphael Câmara, conhecido militante antiaborto.

A vontade do Ministério é que pessoas que sofreram violência sexual e precisem passar por um aborto legal se sintam constrangidas e perseguidas pela Justiça. No ano passado foram realizados, segundo dados do SUS, 1,8 mil abortos legais no País por motivo de violência sexual, risco de morte da mãe e anencefalia do feto. Por trás desses números há um enorme problema social que veio à tona com o caso da menina de 11 anos que engravidou em um estupro e foi dissuadida pela juiza Joana Ribeiro Zimmer, da comarca de Tijucas, em Santa Catarina, de interromper a gravidez. A atitude de Joana causou revolta generalizada e expôs um pensamento cruel em que se admite que uma criança se torne mãe por mero capricho ideológico. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, recém divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que 30,5 mil meninas de até 13 anos foram estupradas em 2021. Isso significa que a cada 17 minutos uma garota dessa idade sofre violência sexual. Não existem estimativas de quantas ficaram grávidas, mas certamente é um número muito maior do que as que fizeram aborto legal. De acordo com o SUS, no ano passado, 17 mil garotas de até 14 anos foram mães. Para o governo isso não é um grande problema e o leva inclusive a abandonar a educação sexual e promover a ideologia do aborto.

RETROCESSO Olímpio Moraes foi excomungado pela Igreja (Crédito:Teresa Maia)

30 mil é o número de jovens com até 13 anos que foram estupradas em 2021: um estupro a cada 17 minutos

Defensorias públicas de 13 estados brasileiros fizeram um documento em que criticam a cartilha do Ministério com o argumento de que ela pode produzir desinformação sobre o tema e restringir os direitos de mulheres e meninas. As defensorias consideram também que a cartilha abusa de julgamentos morais e sem respaldo científico. Para o médico Olimpio Moraes, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), que já foi alvo de dois processos de excomunhão da Igreja Católica, o mundo vive um retrocesso conservador e uma parte da população se sente agredida pelas mudanças de costumes nas últimas décadas, como a admissão da realização do aborto em situações específicas. “Essa audiência pública foi realizada por pessoas que não entendem nada de saúde e nem de Justiça”, afirma. “O Ministério promove a desinformação e nós temos que trabalhar para combatê-la.” Para Morais, a gravidez forçada, que o governo incentiva, é uma violência, uma tortura e frequentemente uma sentença de morte. Cabe ao Estado agir no sentido de evitar isso e acolher as vítimas de violência sexual. “Essas mulheres lidam com a falta de informação. A mulher brasileira não sabe o que é estupro”, afirma. “Você nunca verá a filha de um juiz ou deputado passando por um aborto clandestino. Isso só acontece com mulheres pobres. Nós estamos vivendo um pesadelo e esperamos acordar.” Segundo ele, o negacionismo tem interesses políticos e econômicos muito fortes. O assunto divide a população de vários países. Na Europa também se percebe uma polarização em torno da questão. Nos últimos dias, movimentos feministas franceses se manifestaram em apoio às mulheres americanas e contra a decisão da Suprema Corte. Em fevereiro deste ano, a França aprovou a extensão dos prazos do aborto de 12 para 14 semanas de gravidez. Na Espanha, onde há uma grande população cristã fundamentalista, houve manifestações recentes contra o aborto por causa de uma lei que o governo de esquerda quer aprovar para garantir seu acesso nos hospitais públicos. Os manifestantes portavam cartazes onde se lia “O aborto não é um direito” e “Mais respeito pela vida”.

17 mil: Número de meninas de até 14 anos que foram mães no ano passado, segundo o SUS

Radicalização do debate

De várias maneiras, a radicalização do debate está associada a um esforço para dar fôlego político para grupos conservadores, que consideram o aborto um assassinato em qualquer hipótese, apoiados em interpretações religiosas. Por aqui, claramente, a discussão chega impulsionada por Bolsonaro, que quer animar a militância e colocar a pecha de abortista na esquerda. É preciso esclarecer que em nenhum momento se discute a liberação total do aborto, algo que a grande maioria dos brasileiros é contra – uma pesquisa internacional divulgada em setembro de 2021 mostrou que apenas 31% da população aceita que ele seja permitido sempre que uma mulher o desejar. O que se pretende num ambiente democrático é só que os direitos conquistados estejam assegurados e que em situações específicas o procedimento seja realizado com o amparo do Estado. Nos Estados Unidos, caiu a jurisprudência que assegurava o direito ao aborto, mas haverá uma reação dos estados democratas e do movimento feminista. No Brasil, apesar dos esforços obscurantistas do governo, a reação da sociedade também tem sido vigorosa.

Invasão de privacidade
No mundo das redes sociais, em que likes se revertem em dinheiro, parece que o respeito ao próximo foi deixado de lado e privacidade e empatia se tornaram palavras vazias

Essa semana o caso que envolveu a atriz Klara Castanho, de 21 anos, fez a sociedade se questionar sobre o lado irresponsável do jornalismo de celebridades e a mórbida audiência do engajamento nocivo. A atriz, semana passada, publicou uma carta aberta em suas redes sociais em que conta que foi vítima de estupro e que se viu forçada a se manifestar depois de sua história ser veiculada sem sua permissão. “Fui estuprada. Relembrar esse episódio traz uma sensação de morte, porque algo morreu em mim. As únicas coisas que tive forças para fazer foram tomar a pílula do dia seguinte e fazer alguns exames”, relata, em seu texto.

“Fui estuprada. Relembrar esse episódio me traz uma sensação
de morte porque algo morreu em mim” Klara Castanho, atriz (Crédito:Divulgação)

Klara depois do parto entregou a criança para a adoção, num processo que deveria ter sido mantido em sigilo, pois além da proteção garantida pela legislação, esperava-se um comportamento ético dos profissionais envolvidos, mas não foi o que aconteceu. No dia 24 de maio, um post do jornalista Matheus Baldi dizendo que Klara teria dado à luz foi publicado, mas logo em seguida apagado a pedido da atriz. No entanto, a notícia se espalhou e a apresentadora Antônia Fontenelle incitou ainda mais os comentários contra Klara na internet.

Foi então que Léo Dias, do portal Metrópoles, divulgou todos os detalhes de como teria sido feito o processo. A pergunta que não quer calar é: quais os desdobramentos legais de tal ato criminoso? Léo Dias, por exemplo, não foi demitido, mas foi denunciado pela Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) e ao SJPDF (Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal). “São fortes as evidências de que o colunista feriu o Código de Ética do Jornalista Brasileiro. Pela gravidade do caso, a diretoria executiva e a Comissão de Mulheres da Fenaj encaminharão a denúncia à Comissão de Ética do Sindicato, que vai apurar o caso”, diz o texto. (Mirela Luiz)