Esse artigo é um pouco como a música popular brasileira: “ri e chora ao mesmo tempo”, como um dia a definiu o mestre Tom Jobim.

E, dessa forma, dá-se a tessitura das palavras no texto porque a sua personagem ria e chorava simultaneamente. Coisa difícil e rara na vida. Mas nela tudo era raro.

O doce do riso com o sal da lágrima é o signo da nobreza da raridade. Cilene não chorava de tristeza nem de dor. Os olhos umedeciam quando se emocionava, e era ela pura emoção.

Cilene Pereira morreu. Foi editora de Medicina de ISTOÉ, uma das jornalistas mais competentes do Brasil. Chorava quando encarava os mais técnicos e difíceis estudos na área médica, e ao mesmo tempo ria porque sabia que iria decifrá-los. Mais: sabia que conseguiria comunicá-los aos leitores de forma compreensível. Coisa rara.

Cilene deixa marido, duas filhas e um filho, um campo florido de amigas e amigos. Eu conheci uma das meninas entre o final da infância e o começo da adolescência – veio à redação. Telefonavam sempre para a mãe. Cline ria, chorava de rir. Cilene amava suas crianças. Muito. E as amava de forma rara, às vezes demonstrando falsa braveza apenas para não perder o que chamava ironicamente de “linha pedagógica”.

E assim seguia a vida, mas quis o destino que uma rara doença, rara entre as mais raras, traísse a editora de Medicina. A doença tem nome bobo: paramiloidose. É uma enfermidade genética que afeta proteína sintetizada no fígado, responsável pelo transporte da vitamina A. Doença terrível para nós mortais. Cilene zoava que estava com “pobrema no figo”. Certo dia “brigou com Deus”. Ela usou essas palavras comigo.

Cilene, de forma rara, unia ciência e Deus, não feito desleixada, mas com o rigor de quem sabe qual é o momento de uma coisa e o momento de outra coisa. Ela sabia que ciência e Deus ainda se encontrarão. Mas, rara em tudo, me disse que tinha brigado com a religião. Se depois se reconciliou, isso não sei, ela saiu de ISTOÉ — e, coisa não rara na vida, o contato foi se esvaindo. Cá para mim, a briga divina não foi muito séria não.

No seu Whatsapp estava escrito: “somos todos diferentes”. E ela de fato tratava cada um de acordo com sua especificidade. Não era altruísmo, era jeito raro de ser.

Veio um AVC, veio hipoxia, ela partiu na segunda-feira 11, aos 57 anos. Não me deito ao chão ao modo dos desesperados, lembrando Drummond no falecimento de Mario de Andrade. Somente penso o quanto Cilene e Tom Jobim estão agora rindo e chorando ao mesmo tempo, juntos rindo e chorando porque cantando música popular brasileira, porque cantando e catando som no ar.